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A humanidade de Zé Agrippino de Paula

“O objetivo básico do artista é ser admirado no que ele faz” (José Agrippino de Paula, em entrevista concedida por escrito, Embu das Artes-SP, 1996).

Quinze anos haviam passado desde o dia que entrevistei José Agrippino de Paula e Silva. Como as tentativas de publicar a entrevista tinham sido infrutíferas, o artista que jamais quis se categorizar foi guardado numa afetiva caixinha verde, de minha memória afetiva, desde o início da graduação em Jornalismo. Vez ou outra lia um artigo sobre seu trabalho em revistas ou blogs que abordavam a contracultura brasileira. Desafiada a fazer uma resenha sobre alguma obra audiovisual como trabalho de conclusão da disciplina “Introdução à Linguagem Audiovisual”, do curso de Especialização em Linguagem, Cultura e Mídia da Unesp (2011), tive o insight de fazer algo diferente e, ao mesmo tempo, reabrir a minha caixinha verde. E lá estava vivo e vibrante José Agrippino de Paula e sua caligrafia, já desestruturada num papel amarelado. Foi um tiro no escuro. Em aula, nunca comentei com o professor sobre meu interesse quase patológico pelo trabalho daquele velho guru, chamado de bruxo por alguns moradores da pequena Embu das Artes (SP), onde vivi até os 18 anos de idade. Não tinha, portanto, nenhuma certeza de que o professor apreciaria o trabalho ou se ele engrossava o caldo dos que sequer reconhecem a obra agrippiniana, no que trata de sua produção em cinema. Tema escolhido, o segundo tiro no escuro tinha a ver com a pessoalidade do texto. Não era possível relatar uma experiência de contato sendo distante e seguindo normas rígidas de redação científica. Os dados foram lançados.

O autor de obras lancinantes e inovadoras, considerado pelo físico Mario Schenberg como uma das personalidades mais poderosas e significativas daquela geração (SHIRASSU JR., 2011), incensado como gênio tropicalista por uma nata da intelectualidade paulistana (BRESSANE, 2007; MEIRELLES, 2009) e anunciado em alto e bom som pelo pop-tropicalista Caetano Veloso como “autor fatal e inspirador” (1), José Agrippino de Paula (1937-2007) deixou uma obra latente, marcada pela convicção de provocar mudanças interiores no homem e resistir a um regime militar cruel e sufocante. O desejo pelo natural – e pela natureza -, a liberdade extremada, a vontade de ganhar as ruas e fazer barulho são marcas de todas as suas obras.

Agrippino foi, de fato, um lume para o pensamento da época: seu livro Panamérica não só inspirou Caetano Veloso a dali retirar versos para Sampa ("Panaméricas de Áfricas utópicas"), como também guiou Gilberto Gil a compor trechos como "eu e ela estávamos ali abraçados na parede", música presente no disco Doces Bárbaros (MEIRELLES, 2009, s.p.).

No cinema, com uma câmera Super-8 (2), Agrippino somou-se a turma (como gostava de dizer), que tinha uma ideia na cabeça e uma câmera na mão. Com poucos recursos ele deixou sua marca e apresentou ao público (seleto) um olhar estranhamente peculiar. Mas muito provavelmente sem tais intenções. “Ele só queria se expressar. Nunca me pareceu egocêntrico como muitos outros cineastas” (PALUMBO, 2012).

_____________ 1 Durante o show de 50 anos do Banco Itaú, esquina da avenida Ipiranga com a São João, na capital paulista, 1997.

2 Super-8 (ou Super 8 milímetros) é um formato cinematográfico desenvolvido nos anos 1960 e lançado no mercado em 1965 pela Kodak, como um aperfeiçoamento do antigo formato 8 milímetros, mantendo a mesma bitola.

Sempre ligado às artes em geral, formado em Arquitetura, casado com uma reconhecida bailarina (Maria Esther Stockler) e amigo de atores, compositores, cantores e artistas plásticos, Agrippino deixa claro todas essas referências em suas obras.

"A Maria Esther era uma pessoa altamente informada porque viveu em Nova Iorque. Nós conhecemos também Jô Soares, ele de vez em quando ia pra Nova Iorque e trazia discos. Caetano Veloso também tinha muitos discos. Quer dizer, aqui em São Paulo nós tínhamos uma quantidade de informação do mundo, assim moderno, de Nova Iorque, muito grande". O mix the media theater. (AGRIPPINO, apud MEIRELLES, 2009, s.p.)

Em Hitler 3º mundo (1968), por exemplo, há certa teatralidade nos passos dos atores e muito improviso, tanto quanto possível nas ruas de São Paulo. Considerado um dos filmes mais inquietantes do cinema brasileiro - pelo menos dessa vertente considerada marginalizada -, o filme é gravado em Super-8, em preto e branco, com direção fotográfica de Jorge Bodanzky, no auge da repressão militar e rodado na clandestinidade. O preto e branco, aliás, representa muito bem o panorama sufocante daquele período. Com imagens capturadas nas ruas de São Paulo, o filme apresenta a mesma narrativa fragmentada que Agrippino usa em seus livros.

Para Yann Beauvais (2008, p.254), “a escrita cinematográfica de Hitler 3º mundo, assim como aquela que norteia os diferentes happenings, contesta nossos hábitos de assistir a um filme, ver um espetáculo ou ler um livro”.

Em enquadramentos distorcidos e ângulos aberrantes, o nazismo engole a cidade de São Paulo numa comédia experimental e extraordinária que situa personagens caóticos, como o Samurai – personagem interpretada por Jô Soares –, que tenta apagar as imagens reproduzidas na televisão e, indignado, acaba cometendo um haraquiri, uma técnica de suicídio oriental (BEAUVAIS, 2008).

Se olharmos essa obra agrippiniana à luz da Filosofia da mente, em especial tópicos como corpo, cérebro e memória, podemos refletir, por exemplo, sobre o que o peso do corpo do Samurai revela de sua identidade? Para Merleau Ponty (1997), não dá para separar o que nós somos da nossa inserção corporal no mundo. O que era, então, aquela “coisa” que numa cena alimentava crianças da favela como se fossem animais e noutra buscava destruir as imagens da chamada Indústria Cultural da tela da tevê?

Ainda para Merleau Ponty, a linguagem é uma ferramenta corporal importante. O que dizer, então, dos indivíduos apresentados no filme por Agrippino? Todas as personagens de Hitler 3º mundo, bestializados, crus, robóticos e ridículos se parecem – e muito - com os indivíduos/personagens dos dias atuais. “No filme, o Coisa, um Jô Soares vestido de gueixa e PMs reais atuando como militares (!) caçam Hitler pelas ruas do centro de São Paulo” (BRESSANE, 2007, s.p.). Revolucionários, amantes, ingênuos e bárbaros circulam por cenas paranoicas, frustrantes e miseráveis que retratam um país subdesenvolvido e degradado. Ao mesmo tempo, é um filme que debocha e celebra o caos. Causa certa angustia incômoda e, por isso mesmo, faz um convite à transgressão. Em geral, as imagens que compõem Hitler chegam a ser perturbadoras e deixam evidente uma crítica cortante que visa antes de tudo contestar a ordem imposta. E, num olhar agudo, Agrippino parece se divertir usando armas num filme gravado em plenos anos de chumbo da ditadura militar. Pensando esteticamente, Hitler 3º mundo insere-se no chamado Cinema Marginal, especialmente porque para fugir da acirrada censura da época, o autor subverteu linguagem e a narrativa linear para expressar opiniões e críticas políticas, para tentar não ser compreendido pelo regime militar. Ainda assim, o filme foi censurado e proibido. Uma das cenas mais emblemáticas mostra Cristo e os apóstolos em uma barca na areia, que não se move. Retrato bem duro da sociedade e do país da época.

Experiência imagética

No curta experimental Céu sobre Água (1978) – visualmente o mais belo filme de Agrippino - há registros em super-8, na praia de Arembepe (BA), de uma integração perfeita entre homem e natureza. Segundo o jornalista e blogueiro Ronaldo Bressane, o escritor Beto Hoisel relata no livro “Aquele Tempo” (2003, editora Século 22) um pouco do clima daquela praia:

"Arembepe era uma Aldeia Hippie, que nos proporcionou um extraordinário ensaio sociológico onde se experimentou um modelo de sociedade alternativa. Experimento que bem poderia ser uma semente de práticas e relacionamentos humanos mais lúcidos do que os vigentes neste mundo em que, bem ou mal, vivemos." (HOISEL, apud BRESSANE, 2007, s.p.)

As cenas capturadas durante seis anos na praia baiana flagraram movimentos de sua então mulher Maria Esther Stockler, grávida, dentro da água, e depois, já com a filha, Manhã, em contato com a natureza fantástica. Num azul infinito, água e céu se misturam e são embalados por movimentos sutis e envolventes, por exemplo, das mãos de Esther, cujos dedos parecem emitir os sons da trilha pontuada por uma cítara indiana. Neste filme de longos planos estáticos, a nudez (característica em outras obras do autor) vai além da ideia libertária de vida e é profundamente imagética. O corpo nu integra-se perfeitamente à natureza e somado a elementos como a água e a luz vai ganhando contornos incríveis e luminosos. Desta forma, Agrippino apresenta a mulher, a filha e a natureza sob diversas óticas e planos (geral, primeiríssimo plano e plano de detalhe), eliminando totalmente a necessidade de um roteiro definido – mais uma marca do autor: a ausência de roteiros. Levados pelas imagens criadas, assistimos a um filme cru e ao mesmo tempo recheado de elementos sensoriais. E assim, inspirado e inspirador, autor e obra se misturam, confundem-se e trazem à tona um olhar tão esquizofrênico quanto fiel do homem e de suas experiências políticas e eróticas. Impressões confirmadas em depoimentos como o de Hoisel: Não era fácil acompanhar a lógica da sua narrativa oral, o fluxo da sua conversa era como a narrativa de PanAmérica: um jorro incessante de palavras, um fluir contínuo de imagens, diferentes assuntos embaralhados simultaneamente. (HOISEL, apud BRESSANE, 2007, s.p)

O anônimo morador da avenida Elias Yasbek no Embu das Artes

Cortante. Desconcertante. Extravagante. Eram essas as palavras que martelavam na minha mente toda vez que passava diante da casa número 1.640, da avenida Elias Yazbek, em frente ao Cemitério Municipal da charmosa Embu das Artes (a 32Km da capital paulista). De olhar fugidio, aquele homem estranho, barbudo, de roupas brancas ou azuis em malha de pijama chamava a atenção daquela estudante de jornalismo muito antes de ser descoberto como escritor, cineasta, teatrólogo (figura 1)... Um multi-artista, por fim, de um período que para a cultura e o cinema se desenhava rico em ideias, mas pobre em recursos (1960-1970).

Foi Jairo Ferreira – em seu Cinema de Invenção (Editora Max Limonad, 1ª. edição, 1986) – quem deu pistas da trajetória e suposta genialidade de José Agrippino de Paula. No livro, Ferreira questionava: “por onde andará aquele guru, de barba longa e voz macia, visto pela última vez na Bahia?” Pergunta prontamente respondida pela estudante em uma biblioteca paulistana: em Embu! Ele mora em Embu! Pouco depois, em 1998, era o jornalista e cronista Mario Prata quem o procurava e seu Blog: “Mostra a sua cara, Zé. Vamos reeditar o seu livro e vamos reeditar a sua vida.” (PRATA, 1998, s.p)

Fig. 1: Agrippino na frente da casa onde viveu seus últimos anos de vida, em Embu das Artes (SP). Foto Acervo do SESC-SP.

Antes de prosseguir, abro caminho para o blogueiro Rubens Shirassu Jr. (2011) desvendar um pouco da produção da personagem que vivia anonimamente em Embu:

José Agrippino de Paula teve sua produção focada nas artes visuais, cinema, literatura e um pouco de música. Este paulistano eclético produziu dramaturgia (O Rito do Amor Selvagem), literatura (Lugar Público, prefaciado por Carlos Heitor Cony, e Madame Estereofônica) e cinema (Hitler 3º mundo), que tem no elenco Jô Soares, O Coisa, com Manoel Domingos no papel título, O Céu sobre Água, com sua esposa e bailarina Maria Ester Stockler e Candomblé no Togo). É o autor de “PanAmérica”, livro citado por Caetano Veloso na música “Sampa”, através do verso "Panamérica de Áfricas utópicas", em “Eu e Ela Encostados na Parede”, no CD Os Doces Bárbaros, além dos livros do próprio Caetano: “Alegria, Alegria” e “Verdade Tropical”. A obra foi lançada em 1967 e é cultuada até hoje. O texto mostra-se tropicalista, uma mistura de personagens - de Marilyn Monroe a Che Guevara, de Karl Marx a Harpo Marx - que vivem uma aventura bem surrealista que acaba com a destruição do mundo. (SHIRASSU, 2011, s.p)

Caminho para idas ao banco e à biblioteca municipal de Embu das Artes, a avenida Elias Yazbek guardava segredos, que pareciam cada vez mais instigantes, para quem estava descobrindo a cena cultural paulistana em meados dos anos 90. Mas que também tinha muita atração pelos movimentos hippies que permearam a tal contracultura e coloriram os anos 1970, vividos pelos pais paulistanos que bem cedo habitaram Embu. É neste contexto que Hitler 3º mundo e Céu sobre mar foram encontrados, lidos e congelados. Perseguir aquele homem se tornou uma espécie de investigação literária e cultural.

Frequentador do então supermercado Gigante, no bairro Cercado Grande, Agrippino comprava habitualmente arroz e pães integrais, frutas e verduras. Já naquela época, idos dos nos 1990, levava sua própria sacola de palha para carregar os alimentos comprados. Um homem coerente, que nas palavras de Vitor Angelo: “Zé Agrippino está além de seu tempo e de seu país. Ele é uma espécie de Leonardo da Vinci do terceiro mundo” (2012). Mas, para os embuenses, ele era apenas um velho esquisito. Para a estudante, um misterioso guru.

Algumas vezes, ela teve a impressão de que ele fugia de seu olhar – mas secretamente também a observava. É como se, de alguma forma, ele soubesse que ela sabia de sua relevância cultural, de suas ideias rebeldes, de suas atividades audiovisuais... E tivesse medo de ser incomodado. Por cerca de quatro anos (entre 1994 e 1997), travei com Agrippino uma espécie de relação muda de quem passa na frente de sua casa, olha e pensa algo como “eu sei quem você é”, seguindo numa curiosidade angustiante por um diálogo que não vinha. Ele, por sua vez, fitava-me num misto de curiosidade e repulsa. Até que um dia de julho de 1996, tomei coragem e bati palmas diante de seu portão para solicitar-lhe uma entrevista (jamais publicada). Ele saiu na janela e deu permissão para que eu entrasse no quintal e falasse com ele do lado de fora. A sensação foi das piores. Nada é mais constrangedor do que estar diante de alguém considerado importante e perder a voz. Por fim, balbuciei algumas poucas palavras, e ele concordou que eu enviasse as perguntas por escrito. O que vi foi um homem de peso, sentado passivamente, de semblante sereno, voz mansa e ideias confusas entre o passado e o presente. Ele estava ali, mas parecia estar mesmo flutuando. Uma cena similar a dublagens malfeitas, a voz saia daquela boca, mas parecia sair de caixas de som escondidas no cômodo sombrio.

O encontro foi praticamente uma metáfora do que muito de sua arte é: angustiante, intermitente, latejante. As respostas da entrevista concedida por escrito vieram cerca de uma semana depois (figura 2). O conteúdo, meio frustrante (para a minha expectativa da época).

Fig. 2: A caligrafia de Agrippino na resposta para minha primeira questão sobre Hitler 3º mundo.

Fig. 3: Questionado sobre o fato de parecer arredio, Agrippino afirma ir a Vernissages.

Agrippino parecia viver de lembranças. Preso ao passado, o homem taciturno que eu via diariamente na varanda, de frente para o Cemitério Municipal, dizia que ainda frequentava vernissages e coquetéis paulistanos e que, portanto, tinha uma vida social bem movimentada (fig.3). Difícil acreditar. Cheguei a pensar que tinha perdido meu tempo e que talvez os embuenses estivessem certos sobre sua sanidade mental. Mesmo assim, decidi continuar pesquisando vida e obra tão conturbadas, afinal ele deu sinais de produção ativa, inclusive previa escrever um romance realista de cidade grande, como descreveu em sua segunda resposta (figura 4).

Fig. 4: o autor comenta sobre desejo de produzir um novo romance de cidade grande.

Se para Pierre Lévy, a escrita tem consequência radical na construção do ser humano e é uma ferramenta de memória que constrói a identidade pessoal, talvez a escrita de Agrippino, monossilábica, pontuada e cortante, mostre mais dele, do que se falou até hoje. O que restam são mais perguntas. A esquizofrenia teria nascido com Agrippino ou foi desenvolvida após as perseguições vividas por ele e a mulher, Maria Esther, nos anos de chumbo, como descrevem Bressane, Meirelles, Prata e outros autores?

“Depois de constantes surtos – o escritor Ronaldo Brassane escreveu em seu blog - que Agrippino era visto praticando ioga nu em Ipanema – em seguidas internações, o escritor foi diagnosticado com esquizofrenia, em 1981, época em que a Justiça o interditou e sua tutela foi entregue ao irmão, Guilherme de Paula”, relata Paitomas no Blog Cabana do Pai (2009). “Ele foi ficando cada vez mais eremita, até que em 1980 recebeu um diagnóstico de esquizofrenia. E sumiu. Em 2002, resolvemos ir atrás do gênio”

(BRESSANE, 2007).

O autor do Blog Cabana do Pai descreve Agrippino como precursor do Tropicalismo e vai além:

"Ele não figura entre as estrelas da Tropicália, nem é lembrado com frequência quando o assunto é esse movimento, que virou do avesso o cenário cultural brasileiro do fim dos anos de 1960. Mas José Agrippino de Paula estava lá. A bem dizer foi um dos primeiros a chegar. E, infelizmente, um dos primeiros a sair. O escritor viveu o que se poderia chamar de auge até a década seguinte e, então, a vida desviou o caminho, roubando-lhe, com um diagnóstico de esquizofrenia, a lucidez e o contato com o mundo real." (PAITOMAS, 2009, s.p.)

Fig. 5: Agrippino fala sobre seus gostos culturais.

Será mesmo que um dia Agrippino foi lúcido (como a sociedade chama)? Ou teria sido já a visão aguçada das mentes diferenciadas uma das responsáveis pela revolucionária obra deste autor? Mesmo que essa face da vida do autor jamais seja desvendada, nada mudará um fato: José Agrippino de Paula não cedeu aos encantos do sucesso, das bilheterias, do cinema comercial. Não vestiu terno, como fez o pop-tropicalista Caetano Veloso. Não gravou na super-8 as cenas finais que teve a chance de gravar, a convite de Miriam Chnaiderman, que produziu o documentário “Passeios no Recanto Silvestre” (disponível do YouTube). E certamente também não iria gostar de ser categorizado como membro deste ou daquele movimento. Pop-tropicalista? Experimentalista superoitista? Maldito? Não importa. Agrippino era avesso demais às padronizações e aos enquadramentos convencionais para ter seus passos, suas convicções e experiências artísticas classificadas, como bem pontua Vitor Angelo, no encarte que acompanha o DVD lançado em março de 2012, com as obras audiovisuais de Agrippino, numa série sobre Cinema Marginal Brasileiro: Talvez seja nosso artista mais arredio a esse tipo de classificação de que os bancos escolares, as enciclopédias e, por que não, os catálogos de mostras tanto necessitam.

Sob meu olhar, arriscaria dizer que ele era um artista na experiência mais completa, talvez. Um revoltado e crítico do próprio ser humano, com certeza. Em quatro de julho de 2007, um infarto fulminante matou Agrippino. Pouco antes, em 2006, sua ex-mulher Maria Esther Stockler também faleceu, vítima de um câncer. E os dias finais de Agrippino foram dias de um homem anônimo, doente, mas firme na convicção de apartar-se de tudo o que já não suportava mais: as ruas, a violência, as repressoras relações sociais. Para o bem e para o mal, deixou uma obra tida como genial e também esquizofrênica, lembrada, cantada e contada por poucos, como observa Shirassu:

“Agrippino de Paula, o guru pop e tropicalista, caiu no esquecimento da imprensa e do público do Brasil, como tantos artistas incompreendidos, dos anos 1980 em diante. Apenas uma revista dirigida e com forte influência do pop, e alguns sites e blogs cults da internet, reviveram toda a trajetória deste artista multifacetado. (SHIRASSU, 2011, s.p.).

A ampliação das ideias e a beleza do improviso

“O Agrippino teve sorte de te encontrar”. As palavras foram proferidas em sala de aula pelo professor Hidalgo, após leitura do trabalho sobre Agrippino (UNESP, 2011). E mais: Hidalgo me informara de que um DVD zero bala, produzido e editado pela Lumi Filmes e a Heco Produções (2012), estava saindo do forno numa série sobre Cinema Marginal. E o DVD número 06 traria pela primeira vez para exibição comercial ao público Hitler 3º mundo, Maria Esther: Danças na África e Céu sobre água. Era realmente a hora de falar mais sobre o Zé. Ou não, afinal, com o DVD, a mídia falaria mais dele e, provavelmente contrariando a postura arredia do Zé, ele poderia se tornar mais popular.

De todo modo, o trabalho era atual e deveria, sim, ser ampliado. Uma frase dita em 1998, num blog de quem conviveu com o Agrippino nos nervosos anos 1960, veio à tona de novo: “Mostra a sua cara, Zé. Vamos reeditar o seu livro e vamos reeditar a sua vida”. (PRATA, 1998) Outra frase, parte da entrevista que me concedeu em 1996, confirma a decisão de ampliar este artigo: “O objetivo básico do artista é ser admirado no que ele faz”.

E quem trabalhou com o Agrippino sabe bem o significado de admirar esse trabalho. Encontro, então, a atriz Danielle Palumbo 3, que, além de fazer parte do elenco de Hitler 3º mundo, aparece nos créditos do filme como diretora de produção, embora ela mesma não se lembre bem disso. É ela quem se chacoalha numa das primeiras cenas do filme dentro de um fusca, ao resmungar de um homem.

Aos 72 anos, Danielle residia em Londrina (PR) até meados de fevereiro de 2012. Depois, mudou-se para Cotia (SP), município próximo a Embu das Artes, onde José Agrippino de Paula viveu seus últimos anos. Desde o primeiro contato via Internet, Danielle demonstrou também ter voltado ao tempo, e por lá ficado. De 2012, sem nem mesmo arrumar as malas, a atriz entregue e apaixonada aterrissou (viajou a meu pedido) diretamente para os tablados do Teatro Anchieta, em meados de 1967, para lembrar quando foi avaliada por José Agrippino de Paula e Maria Esther Stockler num teste para a peça teatral Tarzan III MundoO Mustang Hibernado (1968). Para Lucila Meirelles, curadora das obras audiovisuais de Agrippino, “a peça Tarzan era muito requintada, uma mistura de expressões, tecnologia, teatro, dança, beleza visual”. Desde então, relata Danielle, eles trabalharam juntos em alguns espetáculos e no filme. Havia uma intertextualidade entre o que fazia o grupo Sonda, no teatro, e o que Agrippino gravava nas ruas de São Paulo, em Hitler 3º mundo. Tanto é que, em seus relatos, não raro a atriz confunde cenas da peça Rito do Amor Selvagem (1969) com outras do filme. A marca da obra Agrippiniana, segundo Palumbo, eram o improviso e o movimento corporal (fig. 6, arquivo pessoal Danielle Palumbo).

_____________ 3 Atriz francesa, filha de pai judeu-polonês e mãe italiana, nascida em 02/12/1949, chegou ao Brasil em 1946 e conheceu Agrippino em 1968. Contatada pela Internet, concedeu entrevistas a autora em março de 2012, via webcam, MSN e e-mail.

Fig. 6: Ensaio do grupo Sonda, arquivo pessoal de Danielle Palumbo.

“Tanto no teatro quanto no filme a gente tinha que saber dançar e tinha que ser livre, leve e solto”, relata Danielle Palumbo. A marca da improvisação é confirmada por Yann Beauvais ao descrever a rotina de gravação do filme: “A filmagem, na clandestinidade, durou um ano, em função do dinheiro e a disponibilidade dos protagonistas e do operador de câmera. A improvisação dominava. ‘Todas as manhãs saíamos sem saber a que se chegaria até à noite’”. Para o cineasta Yann Beauvais, quando Agrippino começava não tinha ideia da forma que tomaria o filme; “só o desejo de fazer um filme o motivava” (BEAUVAIS, 2008, p. 257). A atriz Danielle Palumbo, corrobora essa afirmação. “Ninguém de nós sabia onde aquelas cenas iam dar. Ele só nos dizia coisas como ‘Dentro de você tem uma melodia. Ouça e expresse’. Era muito estimulante”.

Nós éramos uma turma numerosa e o Zé nos dava total liberdade. O lance dele era movimento, corpo... Ele dizia mais ou menos o enredo e nos instigava a criar. E nós criávamos – e como criávamos. Não havia barreiras e a gente não se importava com nada além da arte que nascia ali. A influência dele era a Maria Esther, sua mulher... Com ela, ele parece ter se apaixonado pelos movimentos. Nem sempre a gente sabia o que estava fazendo. Às vezes era apenas uma sugestão e o Zé nos dava asas. Em Hitler, não havia roteiro com começo, meio e fim. A gente não sabia direito o que estava acontecendo. Um dia ele dizia: a gente vai gravar aqui perto dessa geladeira (Fig. 7)... No outro, mandava a gente entrar numa Kombi... Era muito improvisado e infinitamente divertido. (Danielle Palumbo, 2012)

Fig. 7: Danielle Palumbo e José Agrippino de Paula em cena de Hitler 3º mundo, arquivo pessoal da atriz.

Os ensaios eram intensos. Trabalhavam das 14 as 22 horas. E, por incrível que pareça, até conceder entrevista a esta autora, Danielle Palumbo nunca tinha assistido ao filme nem sabia do lançamento do DVD.

No SESC Belenzinho, entre os dias 12 e 15 de abril de 2012, Danielle, anônima, passou por Arnaldo Antunes, Jorge Bodanzky e outros intelectuais que celebraram e buscaram decifrar o pensamento, a vida e a obra de José Agrippino de Paula, abordando suas manifestações intermídia, seu cinema de transgressão, os happenings, o realismo fantástico e as vivências dos anos 1960 e 1970. Ninguém a entrevistou, nem tão pouco notou sua presença. Mas ela estava lá. Assim como a obra de Agrippino. Talvez sua presença anônima tenha sido justamente a marca contestadora de tudo o que o Agrippino representou. É como se dissessem, juntos, estamos aqui fazendo o nosso barulho, mas sem interesse nessas câmeras.

Referências

ANGELO, Vitor. Hitler 3º mundo. In: Coleção Cinema Marginal Brasileiro, v. 6. Produzido por Lume Filmes, 2012.

BRESSANE, Ronaldo. Agrippino, o profeta da Tropicália. Impostor. Disponível em: <http://impostor.wordpress.com/2007/09/02/agrippino-o-profeta-da-tropicalia/>. Acesso em: 20 jan. 2012.

CÉU sobre água. Direção: José Agrippino de Paula. Produção: José Agrippino de Paula. 1972-1978. (Coleção Cinema Marginal Brasileiro, v. 6). 1 DVD.

HITLER 3º mundo. Direção: José Agrippino de Paula. Produção: José Agrippino de Paula. 1968. (Coleção Cinema Marginal Brasileiro, v. 6). 1 DVD.

HOISEL, Beto. Naquele tempo, em Arembepe. Salvador: Século 22, 2003.

HOISEL, Evelina. Supercaos - os estilhaços da cultura em Panamérica e Nações Unidas. Bahia: Civilização Brasileira, 1980.

MEIRELLES, Lucila. José Agrippino de Paula: artista POP tropicalista. ARS, vol.7, no.14, São Paulo, 2009 (Print version ISSN 1678-5320).

OS PASSEIOS NO RECANTO SILVESTRE. Direção: Miriam Chneiderman. 2006. Filme em Super8 (16 min).

PAULA, José Agripino de. Lugar Público. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965.

______. Panamérica. 1. ed. Rio de Janeiro: Tridente, 1967.

Shirassu Jr, Rubens. A arte pop de Zé Agrippino em Paris. Disponível: http://www.portalprudentino.com.br/noticia/noticias.php?id=21136&titulo=a-arte-pop-de-ze-agrippino-em-paris. Acesso em: 10 fev. 2012.

SINFONIA PANAMÉRICA. Direção: Lucila Meirelles, Walter Silveira e Grima Grimaldi. 1988. Ópera de sons e imagens (15 min).

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