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Isto aqui, ô, ô, é um pouquinho de Brasil, Iaiá! Miguel Falabella e Arthur Bispo do Rosário

O musical norte-americano O HOMEM DE LA MANCHA pertence à história do teatro paulista, com duas montagens de sucesso, diferentes entre si. A primeira foi feita em 1972 e dirigida por Flávio Rangel; a segunda estreou em 2014, com direção de Miguel Fallabela. Fiel ao texto original, Flávio ambientou sua montagem em um calabouço espanhol do século XVI, enquanto que Falabella a colocou em um hospício carioca dos anos 30. Haveria uma traição estética na montagem de 2014? Cremos que não, pois ela nos permite a busca de novos significados, fiéis ao princípio de que o sentido das obras de arte, assim como o da própria história, é sempre produto de uma construção.

O homem cria objetos estéticos não apenas pela sua função prática, mas, principalmente, pela possibilidade de exercer seu potencial criativo ao optar pela ordem de disposição dos elementos constituintes, pelo acréscimo ou eliminação de peças integrantes e pela combinação especial dada ao conjunto. Vivemos bombardeados por informações e obras de arte, contemporâneas ou do passado, que questionam a originalidade das criações artísticas, promovendo a intertextualidade como processo integrante dos atos de produção e de recepção estéticas. Uma montagem teatral deve ser pensada a partir do diálogo proposto com a sua época e com as demais criações artísticas. É o que tentaremos esboçar neste artigo sobre O HOMEM DE LA MANCHA.

Ô, Ô, BROADWAY!

Capa do texto original da peça

Com texto de Dale Wasserman, músicas de Mitch Leigh e letras de Joe Darion, o musical foi encenado pela primeira vez na Broadway em 1965 e ganhou 5 prêmios Tony. A peça se passa no período da inquisição espanhola, quando Miguel de Cervantes é aprisionado e jogado num calabouço em companhia de ladrões e assassinos. Em um julgamento realizado pelos seus companheiros de cela, ele se defende, contando a história de Dom Quixote.

Temos uma obra original criada a partir da referência direta a outra que lhe é anterior, que, neste novo contexto, ganha uma nova função: deixa de ser literatura para se tornar teatro e reforça um aspecto que tornou universal o personagem de Cervantes: ele tenta com todas as suas forças viver uma utopia. Criando uma peça dentro da peça, o autor deu liberdade a várias possibilidades de leitura e de montagem de seu texto, que, se são sempre inerentes ao processo artístico, no seu caso poderia se dizer que já estavam previstas pela estrutura discursiva original. Tais associações criativas são componentes indispensáveis à construção do sentido desta peça que explicita seu ponto de partida, tornando o público consciente e cúmplice da intertextualidade paródica posta em cena.

Partindo da análise de Linda Hutcheon, entendemos a paródia como um processo que vai muito além da imitação ridicularizadora a qual é constantemente associada em dicionários e que se diferencia do pastiche, da citação e da alusão. A autora se propõe a analisar a paródia como um processo integrado de modelação estrutural, de nova execução, de inversão e de uma contextualização mais abrangente de obras artísticas anteriores. Há, portanto, continuidade e mudança, há uma imitação que inclui diferença crítica. A paródia ocorre entre os limites do ridículo e da homenagem reverencial.

Dale Wasserman certamente faz uma homenagem a DOM QUIXOTE DE LA MANCHA e ao seu autor, Miguel de Cervantes. Porém, seu texto teatral vai além. Sua canção mais genial, O Sonho Impossível, transcendeu os limites da peça, sendo gravada e cantada por artistas dos mais diversos estilos, como Elvis Presley, Plácido Domingos e Maria Bethania, entre outros. Acreditamos que esta música pode nos dar uma pista de leitura de O HOMEM DE LA MANCHA e, consequentemente, das duas montagens brasileiras.

AI, AI, IAIÁ! 1972-2014

Inicialmente, as montagens ocorreram em momentos históricos que diferenciaram seus processos criativos e receptivos. Ou seja, artistas e públicos sonhavam de maneiras bem diferentes nos dois períodos.

Em 1972, sob a presidência do General Médici, a ditadura estava em seu período mais repressivo: censura aos meios de comunicação, proibição de manifestações públicas, milhares de mortos e desaparecidos, tortura física e psicológica de presos políticos e violação sistemática dos direitos humanos. O Brasil vivia o milagre econômico, facilitando o crédito, desvalorizando o câmbio, incentivando as exportações e contando com um cenário externo favorável. De acordo com dados do IBGE, o PIB crescia a uma taxa anual de 11,1%; a inflação era de 15,7% ao ano; o desemprego rondava os 3,1% e o salário mínimo era de Cr$ 268,80, cerca de 70 dólares, em valores atuais. A renda brasileira crescia, mas não era distribuída para todos: os lucros concentravam-se nas mãos de poucos e a desigualdade social acentuava-se abertamente: 10% dos mais ricos detinham 48,35 % dos recursos.

Em 2014, o país viveu um período de protestos dos mais variados setores sociais, exigindo a ética na política, o fim da corrupção e da impunidade e a melhoria dos serviços públicos. A partir de março, a Operação Lava-Jato passou a investigar um grande esquema de lavagem e desvio de dinheiro envolvendo a Petrobras, levando à prisão de políticos, empreiteiros e administradores da estatal. Em meio a críticas contra o governo, à FIFA e aos milhões de dólares gastos para a sua realização, o Brasil sediou a Copa do Mundo de Futebol e viu a sua seleção ser goleada por 7x1 pela Alemanha. No segundo turno das eleições presidenciais, Aécio Neves do PSDB e Dilma Roussef do PT fizeram uma das mais apertadas eleições da história, vencidas pela petista por apenas 3,28 % dos votos. Dividido, o país passou a viver repetidas manifestações de confrontos e de intolerância. O salário mínimo valia R$ 724,00 (cerca de 180 dólares, em valores atuais), a taxa de desemprego era de 4,8% e o crescimento foi de somente 0,1% do PIB. Embora melhores, os índices de concentração de renda no Brasil continuaram absurdos: 10% dos mais ricos detinham 41,7% dos recursos.

Ô, Ô, DOM QUIXOTE!!

DOM QUIXOTE, Pablo Picasso, 1955

Nos seus 69 anos de vida, Miguel de Cervantes conheceu a prisão em dois momentos de sua vida. De 1575 a 1580, ficou preso na Argélia, detido pelos turcos que enfrentavam as tropas pontifícias nas quais ele havia se alistado. O resgate exigido era muito alto e seu pai, sem posses, teve de arrecadar dinheiro entre familiares, fidalgos e padres compadecidos. Após outras missões militares, Cervantes passou a se dedicar mais intensamente à literatura. Para sobreviver, tornou-se Comissário Real e Coletor de Impostos, a partir de 1585. Injustamente, foi acusado de desviar verbas e levado à prisão de Sevilha, onde parece ter iniciado a criação de DOM QUIXOTE DE LA MANCHA, obra prima que inaugurou o romance moderno, influenciou dezenas de artistas e legou à humanidade personagens emblemáticos e inesquecíveis. A obra foi editada em duas partes, em 1605 e 1615, um ano antes da morte de seu autor.

Fazendo de seu personagem central um leitor enlouquecido pelas novelas de cavalaria, Cervantes realizou, segundo Linda Hutcheon, uma paródia literária, criando uma obra em diálogo com outras preexistentes, promovendo uma revisão crítica e estrutural, e dando uma nova função aos textos anteriores em um novo contexto estético. A inversão irônica característica da paródia já pode ser notada na apresentação de Quijana feita no primeiro capítulo:

“... este fidalgo, nos intervalos que tinha de ócio (que eram os mais do ano), se dava a ler livros de cavalarias, com tanta afeição e gosto, que se esqueceu quase de todo do exercício da caça e até da administração dos seus bens; e a tanto chegou a sua curiosidade e desatino nesse ponto, que vendeu muitos trechos de terra de semeadura para comprar livros de cavalaria que ler, com o que juntou em casa quantos pôde apanhar daquele gênero; ...”.

Entretanto, a intensão paródica original foi suplantada pela força arquetípica do personagem criado: um sonhador, incansável e imbatível na luta pelos seus ideais, valores e crenças. Superando a forma estética das novelas de cavalaria, DOM QUIXOTE DE LA MANCHA é uma obra singular:

“Talvez os artistas paródicos não façam mais do que apressar um processo natural: a alteração das formas estéticas através dos tempos. Da união do romance de cavalaria com um novo interesse literário pelo realismo cotidiano surgiu Don Quixote e o romance, tal como o conhecemos hoje. Obras paródicas como esta (obras que conseguem, efetivamente, libertar-se do texto de fundo o suficiente para criarem uma forma autônoma) sugerem que a paródia como síntese dialética poderia ser um protótipo do estado de transição neste processo gradual de desenvolvimento das formas literárias”

Dom Quixote luta para desfazer as ofensas imerecidas, para pagar as dívidas e sanar os prejuízos dos mais fracos e injustiçados, para banir as formas de repressão à liberdade e afirmação humanas. E, principalmente, para que a realidade seja vista e modificada pelo homem, de acordo com seus sonhos de paz e felicidade coletiva. O arquétipo quixotesco representa a aventura do homem na Terra, debatendo-se entre o sonho e a realidade. Certamente, são bem diferentes os sonhos pelos quais se debatiam os brasileiros nos anos de 1972 e de 2014.

Na época de Cervantes, a Igreja e a Inquisição espanholas reprimiam toda forma de crítica e de oposição, considerando pecaminosos os romances de cavalaria. Cervantes conseguiu driblar o controle religioso, escrevendo, produzindo e editando a sua obra-prima. Valendo-se da paródia irônica e bem-humorada, a obra conseguiu escapar das garras da Inquisição, atravessar os séculos e estimular todos aqueles que têm ousadia e loucura suficientes para tentar transformar o mundo. Dom Quixote é um cavaleiro medieval em pleno século XVI, seus valores e ideais estão em completo descompasso com sua época. Ao seu lado, segue seu fiel escudeiro, Sancho, cuja única pretensão na vida é encher a pança e enriquecer-se de bens materiais. O romance se estrutura entre o idealismo de Quixote e o realismo popular de Sancho Pança. Triste, melancólico e renegando os livros de cavalaria, Dom Quixote desaparece e Alonso Quijana retoma as rédeas da pouca vida que lhe resta. Fazendo seu testamento, deixa grande parte a Sancho, com quem mantém o diálogo:

“- Perdoa-me, amigo, o haver dado ocasião de pareceres doido como eu, fazendo-te cair no erro, em que eu caí, de pensar que houve e há cavaleiros andantes no mundo.

- Ai!!, respondeu Sancho Pança chorando, não morra Vossa Mercê, senhor meu amo, mas tome o meu conselho e viva muitos anos, porque a maior loucura que pode fazer um homem nessa vida é deixar-se morrer sem mais nem mais, sem ninguém nos matar, nem darem cabo de nós outras mãos que não sejam as da melancolia”.

Fiel à ironia até o fim de sua narrativa, Cervantes fez com que Quijana vivesse por mais três dias, enquanto sua sobrinha comia, a ama bebia e Sancho folgava. Tudo voltava a se passar como se a morte não estivesse ao alcance de todos. E não é assim que a humanidade tem vivido o tempo que lhe é dado permanecer sobre a Terra? Embora rude e iletrado, Sancho pode estar nos dando a chave para a compreensão da maior loucura de todas: o deixar-se morrer de melancolia.

AI! NUNCA MAIS!!

Sabemos que a melancolia não era uma das características de Flávio Rangel. Pelo contrário, ele era um trabalhador de teatro, apaixonado e incansável. Em suas criações, buscava o equilíbrio entre emoção e pensamento, sendo lembrado como um grande encenador, que sabia comover o público com inteligência, que atraía milhares de pessoas para ver suas peças e que conseguia viver de teatro, atualmente um sonho quase impossível. Ele não fazia um teatro comercial, mas também não aderia ao experimentalismo e ao irracionalismo que estavam entrando em cena. Para seu biógrafo, José Rubens Siqueira, suas posições políticas e estéticas não o alinhavam diretamente aos blocos antagônicos de sua época, tornando muito caro o:

“... preço que ele ia ter que pagar por se colocar abertamente contra a corrente da experimentação de novas linguagens teatrais. Como não fechava também do lado dos encenadores meramente comerciais, ficava impossível enquadrar a sua posição individual nos contextos vigentes. Flávio tornou-se uma pessoa difícil para o preto-e-branco das opiniões exigidas pelo clima dominante no país”

Em 1970, Flávio se viu desempregado, após 12 anos de carreira, 22 direções teatrais e os memoráveis sucessos de GIMBA (1959), LIBERDADE, LIBERDADE (1965) e ESPERANDO GODOT (1969). Passou a escrever artigos para o PASQUIM. O humor político do semanário carioca irritava os militares, que, em 1º de novembro de 1970, mandaram prender toda a redação e os funcionários do jornal. Após o período da incomunicabilidade e das trocas de cárceres, Flávio foi solto em 31 de dezembro. Dias depois, perdeu seu amigo, o ex-deputado Rubens Paiva, preso e assassinado pela ditadura.

Flávio estava cansado do Brasil: de ser preso arbitrariamente, de ver seus amigos serem assassinados e de não conseguir fazer teatro. Estava até pensando em ir embora, quando foi convidado por Paulo Autran, para dirigir uma peça de Pirandello, que não teve muito êxito. Mas os deuses do teatro voltariam a sorrir para Flávio com o grande sucesso de ABELARDO E HELÓÍSA, estreado em 22 de setembro de 1971, no Teatro Paiol, em São Paulo. No início de 1972, veio A CAPITAL FEDERAL, musical feito por 30 atores que estreou no Teatro Anchieta, em São Paulo. Com estas peças, Flávio era o diretor de dois dos maiores sucessos de São Paulo. Ao mesmo tempo, já estava envolvido com a produção de O HOMEM DE LA MANCHA, musical que voltaria a juntar no palco Paulo Autran e Bibi Ferreira.

A montagem estreou em 12 de agosto de 1972, no Teatro Municipal de Santo André, em São Paulo. Ao lado de Paulo Pontes, Flávio também era responsável pela tradução do texto. A montagem teve Paulo Autran, Bibi Ferreira e Dante Ruy nos papéis principais e mais 24 atores. As letras das músicas foram traduzidas por Chico Buarque e Ruy Guerra. Em 1º de setembro, a peça foi para o Teatro Anchieta, onde fez uma temporada de sucesso até 14 de novembro. As sessões lotadas e as longas filas de espera por ingressos extras motivaram os produtores a transferirem a peça para o Teatro Aquarius, onde permaneceu em cartaz até 30 de dezembro. Em 15 de janeiro de 1973, a peça inaugurou o luxuoso Teatro Adolpho Bloch, no Rio de Janeiro, com Grande Otelo fazendo o papel de Sancho Pança. A peça ficou em cartaz por 8 meses e, em 1974, fez uma temporada popular de janeiro a março, no Teatro João Caetano.

Revista Manchete anuncia a estreia da peça no Rio de Janeiro

Flávio Rangel, Bibi Ferreira, Murilo Alvarenga e Paulo Autran nos ensaios da peça.

Partindo dos vários encarceramentos vividos por Cervantes, a peça se passava numa prisão. Ao longo dos séculos, muitos artistas e intelectuais haviam sofrido a violência da repressão e, mesmo assim, continuavam lutando pela liberdade. E isto Flávio conhecia bem de perto. Por ser muito melhor ator do que cantor, Paulo Autran desistiu de cantar SONHO IMPOSSÍVEL e passou a falar a seguinte letra de Chico Buarque e Ruy Guerra, ao som da música original:

Sonhar mais um sonho impossível

Lutar quando é fácil ceder

Vencer o inimigo invencível

Negar quando a regra é ceder.

Sofrer a tortura implacável

Romper a incabível prisão

Voar num limite improvável

Tocar o inacessível chão.

É minha lei, é minha questão,

Virar este mundo, cravar este chão.

Não me importa saber

Se é terrível demais,

Quantas guerras terei que perder

Por um pouco de paz.

E amanhã se este chão que eu beijei

Por meu leito e perdão

Vou saber que valeu delirar e morrer de paixão.

E assim, seja lá como for,

Vai ter fim a infinita aflição.

E o mundo vai ver uma flor

Brotar do impossível chão!

O público ia ao delírio e Paulo era aplaudido em cena aberta durante vários minutos. Provavelmente, a maioria dos espectadores transportava-se daquele calabouço espanhol para as prisões lotadas de brasileiros idealistas, que haviam sonhado o sonho impossível de viver em um país democrático, com liberdade e justiça social. No período mais duro da ditadura militar, o Dom Quixote de Paulo nos mandava sonhar pelo fim da infinita aflição e com uma flor que conseguiria brotar no impossível chão. Ainda que o maniqueísmo nunca seja adequado a uma análise crítica, a época favorecia o preto no branco: o inimigo estava claro e bem identificado. O sonho tinha um endereço certo. Bem diferente é o contexto de criação e de recepção da montagem de Miguel Falabella.

Ô, Ô, MUITO ALÉM!!

A intertextualidade da montagem de Falabella se dá, principalmente, com a presença da obra de Arthur Bispo do Rosário. A peça é ambientada em um hospício onde ele viveu e sua poética está presente tanto nos figurinos, quanto no cenário da peça. Além disso, ele está personificado no personagem Governador, interpretado brilhantemente por Guilherme Santana. A trajetória de Bispo do Rosário concretiza a realização de um sonho impossível, ainda que, talvez, ele não tenha sido experimentado plenamente pelo seu criador. Como sua figura é fundamental na montagem do SESI, é importante observar alguns aspectos da sua vida e obra.

Bispo do Rosário nasceu em Japaratuba, Sergipe, no dia 14 de maio de 1909 e morreu internado no Rio de Janeiro, em 5 de julho de 1989. Nos seus 80 anos de vida, foi marinheiro, biscateiro, boxeador e empregado doméstico. Na noite de 22 de dezembro de 1938, despertou com alucinações. Perambulou por ruas e igrejas do Rio, até subir ao Mosteiro de São Bento, onde anunciou a um grupo de monges que era um enviado de Deus, encarregado de julgar os vivos e os mortos. Dois dias depois, foi detido e fichado pela polícia como negro, sem documentos e indigente. Inicialmente conduzido ao Hospício Pedro II, na Praia Vermelha, foi diagnosticado como esquizofrênico- paranóico e transferido para a Colônia Juliano Moreira, em Jacarepaguá. Após alguns anos, trancou-se em um quarto e passou a produzir objetos a partir de materiais a que conseguia ter acesso, como botões, recortes de revistas e de jornais, linhas dos uniformes, canecas, vassouras, garrafas plásticas, etc. O lixo e a sucata da Colônia começaram a se transformar em peças que lhe permitiriam relatar a Deus os acontecimentos e os sofrimentos vividos na Terra. A sua obra mais conhecida é o Manto da Apresentação que ele deveria vestir no dia do Juízo Final.

Manto de Apresentação

A produção de Bispo do Rosário ficou conhecida a partir de uma matéria sobre a Colônia Juliano Moreira feita para o Fantástico, da TV Globo, em 1980. Procurando denunciar o depósito humano em que viviam os doentes mentais, o jornalista Samuel Wainer Filho foi surpreendido pela descoberta do seu trabalho. Em 1982, o crítico Frederico Morais incluiu suas peças em À MARGEM DA VIDA, exposição feita no MAM-RJ. Em 1989, foi fundada a Associação dos Artistas da Colônia Juliano Moreira, para a preservação de suas criações, tombadas em 1992 pelo Instituto Estadual do Patrimônio Artístico e Cultural. Desde então, a obra de Bispo tem sido exposta nos mais importantes eventos culturais do Brasil e do exterior, como na mostra VIVA BRASIL em Estocolmo e na 46ª Bienal de Veneza. Atualmente, a Colônia Juliano Moreira foi transformada em um conjunto habitacional e abriga o Museu Bispo do Rosário, com mais de 800 peças do artista.

Do interior de um pequeno quarto hospitalar, Bispo conquistou o mundo, recriando o seu universo com diversos materiais. Ele bordava painéis, escrevendo com agulha e linha nomes de pessoas, países e acontecimentos que não poderiam ser esquecidos diante de Deus. Por isso, cada palavra lhe era especialmente importante.

Face interna do Manto de Apresentação

Movimentos como o Dadaísmo e o Surrealismo tentaram abolir as fronteiras entre arte e vida cotidiana, mostrando que os objetos mais banais da cultura de massa, podem ser estetizados, introduzidos como tema de outras obras ou incorporados em sua estrutura formal. Isso foi feito por Bispo do Rosário que, sem o saber, adotou procedimentos das vanguardas artísticas do início do século XX, recontextualizando objetos, pluralizando o seu significado e articulando um discurso crítico e estético. Como uma vez produzida, a obra de arte pertence ao mundo e não mais ao seu autor, entendemos que Bispo e tantos artistas contemporâneos promovem um deslocamento espacial de objetos corriqueiros, experimentando combinações inesperadas e possibilitando a existência de novas leituras simbólicas do cotidiano.

Ainda que suas trajetórias não se cruzem objetivamente, é impossível não lembrarmos do trabalho de Nise da Silveira. Fugindo dos procedimentos de choque adotados nos tratamentos psiquiátricos de sua época, ela se dirigiu para a terapia ocupacional e fez do afeto o caminho para penetrar o mundo dos esquizofrênicos. Em 1946, no Centro Psiquiátrico Nacional, no Engenho de Dentro, Nise criou oficinas de artesanato e de atividades artísticas, lutando contra os espancamentos e os encarceramentos que caracterizavam as instituições psiquiátricas. Começaram a surgir as imagens que, manifestando as forças do inconsciente, procuram compensar a dissociação esquizofrênica, vencendo a desordem interior e reatando os vínculos com a realidade. Assim se formou o acervo do Museu de Imagens do Inconsciente, inaugurado em 1952.

A palavra ‘esquizofrenia’ foi cunhada pelo psiquiatra suíço Eugen Bleuler, em 1906. Ela resultou da união de dois radicais gregos: skhizein que significa fender, dividir, rasgar, separar; e phrênos que significa pensamento. Para Bleuler, todos os doentes mentais seriam esquizofrênicos, exceto os maníaco-depressivos, os neuróticos, os epiléticos e os orgânicos. Com Freud, a psicanálise trouxe um novo tratamento para os doentes mentais:

“Quando Freud se dispôs a ouvir seus pacientes, ele restituiu à loucura seu poder de fala. (...) Freud reincorporou a loucura à ordem da subjetividade humana e tornou mais tênue a linha que, até então, separava o normal do patológico. Seus estudos sobre os sonhos, os lapsos, os sintomas e os chistes nos mostraram algumas das expressões da loucura que existem em todos nós”

Embora discípula e tradutora de Carl Jung, a Dra. Nise repetiu o procedimento freudiano de restituir à loucura o seu poder de fala, fazendo da criação artística de seus pacientes a ponte de comunicação com os mais próximos e também com o público das exposições e dos museus brasileiros. Para os pacientes da Dra. Nise e para Bispo do Rosário, o processo de criação de obras de arte foi uma ponte para o reatamento de vínculos com a realidade interior e o contexto exterior, superando-se as condições brutais dos hospícios, verdadeiros calabouços humanos.

Portanto, em termos objetivos, as ambientações das montagens de Flávio e Falabella não se distanciam tanto como podem sugerir à primeira vista. A questão da loucura se coloca para Bispo do Rosário e para O HOMEM DE LA MANCHA, já que além dos sintomas patológicos, é considerado louco todo aquele que se afasta dos padrões normais, que questiona o cotidiano massificado, que opta por pensar e por agir de uma forma diferente da maioria das pessoas. Em geral, artistas, cientistas e revolucionários se comportam dessa maneira, levando-nos a concluir que precisamos mais dos loucos do que dos seres humanos ditos normais. Precisamos de Bispo do Rosário e de Dom Quixote. Certamente, não pode ser considerado ‘normal’ alguém que se conforma e se enquadra muito bem em um mundo marcado pela desigualdade, pela intolerância e pela ignorância. Precisamos de loucos que queiram mudar o mundo, seja intercedendo por nós junto a Deus ou combatendo as injustiças e conquistando a plenitude da existência humana. Sonhar não só mais um sonho, mas sempre um sonho impossível.

AI!?!?... AI!?!?

Na versão montada por Falabella, Dom Quixote e Sancho Pança são apresentados musicalmente, pelos seguintes versos:

Eu sou eu, Dom Quixote, senhor de La Mancha, e o meu destino é lutar.

Pois quem não se aventura, com fé e ternura,

O mundo não pode mudar!

Como a música original não fala exatamente em mudança do mundo, podemos perceber na versão de Falabella que os processos intertextuais acionados promovem a aproximação das loucuras de Bispo do Rosário e de Dom Quixote, pois a fé e a ternura são colocadas como instrumentos de transformação do mundo. O sentimento religioso de Bispo guiava a sua produção artística, encarada como uma missão divina para salvar a humanidade. Fiel aos valores cavalheirescos, Dom Quixote é terno com os fracos e oprimidos, enxergando-os como seres nobres e valorosos, vendo-os diferente do que são e lembrando-lhes a sua dignidade humana.

O HOMEM DE LA MANCHA estreou em 3 de setembro de 2014, no Teatro do SESI, em São Paulo. Miguel Falabella foi responsável pela direção e pela tradução do texto da peça e das músicas. A montagem teve Cleto Baccic, Sara Sarres e Jorge Maya nos papéis principais. Com 35 atores e 17 músicos, as apresentações ocorreram de 4ª a Domingo, até 21/12/2014. Em 2015, a peça foi apresentada de 14 de janeiro a 28 de junho. Em 10 meses de temporada, foram feitas 276 apresentações para um público de 121.135 espectadores. A peça ganhou dois prêmios APCA (Melhor Ator e Melhor Espetáculo) e sete prêmios Bibi Ferreira, incluindo os de Melhor Figurino para Claudio Tovar, Melhor Direção, Melhor Musical e Melhor Musical pelo Voto Popular.

Cena da montagem de Miguel Falabella

Mais uma vez, tivemos um ator negro fazendo o papel de Sancho Pança. A presença de Jorge Maya, um admirável cantor e intérprete, fazia alusão a Grande Otelo e à montagem de Flávio Rangel, funcionando como uma homenagem de Falabella aos artistas predecessores e estabelecendo uma linha de continuidade entre as duas montagens. Na prática, cada obra artística dialoga de alguma maneira com suas antecessoras, seja através da paródia, da citação, da alusão e assim por diante. A alusão é uma ativação simultânea de duas obras, através da correspondência e não da diferença, como é o caso da paródia.

Ao mesmo tempo, a presença de Bispo do Rosário na montagem de Falabella não manifesta uma intenção paródica, na medida em que não é tomada como ponto de partida para a criação de outra obra, que dê uma nova função à sua forma e ao seu conteúdo. Pelo contrário, a obra de Bispo é posta literalmente em cena, em várias citações. Destacamos o personagem Governador vestindo o Manto de Apresentação e com uma atuação e caracterização física marcantes que remetem ao artista. Também as inscrições verbais em letras maiúsculas circundam o espaço cênico e estão presentes em vários elementos cenográficos. Como podemos comparar nas fotos seguintes, o espaço de Aldonza praticamente reproduz a obra de Bispo do Rosário:

Sara Sarres no papel de Aldonza

84 talheres de metais diversos; madeira, papelão, plástico, pregos, fita de tecido e fórmica- Arthur Bispo do Rosário

A obra de Bispo do Rosário foi incorporada à montagem teatral sem operar inversões ou ironias, mas situando imagética e significativamente o ambiente onde se desenvolve a ação: o manicômio e o questionamento da loucura.

Para muitos autores, a paródia e a intertextualidade dependem do reconhecimento do público, que teria liberdade para associar obras artísticas, de acordo com seu repertório cultural e características individuais. Ambos os processos exigem um compartilhamento de códigos e de repertórios entre artistas-criadores e públicos receptores. Talvez, nem todo o público que lotou as sessões do SESI tenha identificado prontamente a intertextualidade posta em cena por Falabella. Ao ler o programa da peça, certamente se informou do processo. Porém, mesmo que isto não tenha ocorrido, a maioria das pessoas ao experimentar a singularidade da montagem, deve ter sentido atraídos para o palco os seus olhos, ouvidos e emoções. Nas duas sessões em que estive presente, pude comprovar o encantamento do público com o talento dos atores, a beleza das músicas e a plasticidade da encenação. Lançando mão da intertextualidade, Falabella conseguiu criar uma montagem de qualidade estética e comunicação popular, provando que estas características não são antagônicas e que a sua coexistência não é um sonho impossível.

Ao contrário de Paulo Autran, Cleto Baccic é um notável cantor e, aproximando-se de seu predecessor, um ator de muito carisma e recursos. Sua interpretação de SONHO IMPOSSÍVEL era um dos pontos altos da peça, sendo também aplaudida em cena aberta. Porém, o sonho agora é outro e as diferenças na versão de Falabella ajudam a elucidar o sentido da montagem de 2014. A loucura está pautada por alguma lucidez: há uma balança cujo fiel deve ser mantido na luta pela justiça; as asas para voar estão cortadas, um mundo melhor é uma ilusão e os sonhos estão distantes e não voltam mais. Porém, devemos continuar cumprindo o nosso papel de lutar e de alcançar as estrelas do céu.

De certa maneira, estamos tendo uma vida esquizofrênica. Nossos valores e comportamentos estão divididos. Tudo parece confuso e nada mais pode ser explicado em termos definitivos. O tempo maniqueísta do preto no branco está sepultado, ainda que o seu enterro tenha sido acompanhado por muitas pessoas, sem coragem de prestar-lhe as devidas homenagens.

Por outro lado, uma série de questões ausentes das prioridades de 1972, ampliaram a nossa sensibilidade, crenças e inteligência. Pensamos na diversidade cultural, na pluralidade sexual e na universalização contraditória das redes de informação. Ainda é possível sonhar, pois cada vez mais são condenadas globalmente as questões do racismo, do aquecimento global, do consumismo predatório e das perseguições religiosas e políticas. Ainda que no Brasil os sonhos nos tenham sido roubados por aqueles em quem depositávamos as nossas esperanças, talvez tenhamos que tentar continuar cumprindo o nosso papel de lutar e de alcançar a utopia das estrelas do céu. Mesmo que essa constelação more na nossa casa, na nossa escola, no nosso trabalho. As estrelas não são as mesmas e seu brilho é sempre diferente.

Finalizamos com a tradução de Falabella para o mais recente SONHO IMPOSSÍVEL:

Sonhar, mais um sonho impossível.

Vencer o inimigo cruel.

Clamar com a voz da justiça.

Manter da balança o fiel.

Saber conceder o perdão.

Amar e exibir seu troféu.

Voar com as asas cortadas.

Chegar às estrelas do céu.

Minha missão é correr atrás

Dos sonhos distantes que não voltam mais.

Viver na ilusão de um mundo melhor

E disposto a sacrificar-se com fé e amor.

E eu sei quando enfim eu me for

Já cumprida a missão,

Vai calar-se sereno e fiel esse meu coração.

E o mundo então vai saber

Que um homem cumpriu seu papel

Lutou com bravura e coragem

Chegou às estrelas do céu!

UM POUCO DE UMA RAÇA, QUE NÃO TEM MEDO DE FUMAÇA, E NÃO SE ENTREGA NÃO!

Quando o homem aponta sua luneta para o sonho, são escancaradas possibilidades infinitas: os hospícios e os calabouços podem se tornar vazios; as verdades eternas podem se romper em grãos de areia espalhados pelo vento; as desigualdades sociais e culturais podem se tornar terríveis lembranças de um passado distante; os ódios, os dogmatismos e as intolerâncias podem se esfumaçar e o reino da plenitude do homem sobre a Terra pode se afirmar. Por que não? Eu vou sonhar, mas um sonho impossível e que valha a pena ser sonhado.

Crê-se que o sistema solar teria se formado há 4,5 bilhões de anos. Muito tempo depois disso, os planetas. Na sua última tese sobre a história, Walter Benjamin cita um biólogo, para quem os 50 mil anos de existência do homem sobre a Terra representariam apenas dois segundos em um dia de 24 horas de toda a vida orgânica do planeta. Sendo assim, há milésimos de segundos, Giordano Bruno foi queimado em praça pública pela Inquisição por defender que a Terra não era o centro de um universo infinito, em eterno movimento e que trazia a presença de Deus em todos os seus seres. Frações de segundo depois, Galileu abjurava as mesmas teses, salvava sua vida e garantia a publicação de suas obras fora da Itália; Molière mudava o final de sua peça Tartufo, atendendo a censura da aristocracia francesa, mas liberando a sua peça para que a hipocrisia pudesse ser corporificada em cena para todo o sempre.

A última prisão de Cervantes sob a acusação de desvio de verbas, ainda que falsa, revela a permanência do problema de apropriação indevida e particular de recursos públicos, confirmando a tese de que milésimos de segundos nos separam de todos os antepassados da história conhecida da humanidade. Porém, no seu caso, além da falsidade da acusação, houve uma recompensa cultural e artística para toda a humanidade: a criação de Dom Quixote. No caso da ditadura militar, houve a criação de uma utopia democrática e socialista de transformação da realidade brasileira. É de se pensar o que nos legarão empreiteiros, publicitários e políticos reincidentemente corruptos.

Espero que os atuais presos nos leguem a necessidade de não fazer da política uma religião; de não ler a sociedade através de dicotomias falsamente excludentes, como nós contra eles; de ler os discursos buscando-se concretizar os substantivos abstratos em práticas que, efetivamente, contribuam para a diminuição dos aberrantes índices de desigualdade social no Brasil e de buscar uma transformação radical nos serviços públicos oferecidos à população. E, principalmente, que a democracia plena seja um fim que permaneça imune aos meios que a corrompem e que possamos continuar identificados aos que sonham sonhos impossíveis.

Referências:

HUTCHEON, Linda. UMA TEORIA DA PARÓDIA, Edições 70, Lisboa, 1985.

CERVANTES, Miguel. DOM QUIXOTE, Editora Abril Cultural, São Paulo, 1981, p.29.

SIQUEIRA, José Rubens. VIVER DE TEATRO, Nova Alexandria, São Paulo, 1995, p.205.

STERIAN, Alexandra. ESQUIZOFRENIA, Casa do Psicólogo, São Paulo, 2001, p.43.

“Comparados com a história da vida orgânica na Terra (...) os míseros 50.000 anos do Homo Sapiens representam algo como dois segundos ao fim de um dia de 24 horas”- SOBRE O CONCEITO DE HISTÓRIA, Walter BENJAMIN, in MAGIA E TÉCNICA, ARTE E POLÍTICA. Editora Brasiliense, São Paulo, 1987.

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