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Falsificadores, hoaxes, Han van Meegeren e Carlos Mirandópolis

Falsificadores, hoaxes, Han van Meegeren e Carlos Mirandópolis.

Falsificações sempre fizeram parte da sociedade chamada humana, pois ela pressupõe produção de sentido, e nesta semana fomos surpreendidos (mais ou menos) com a notícia da existência (e permanência) de um perfil falso sobre um grande jurista e filósofo, na quase nunca confiável Wikipédia, a autoproclamada enciclopédia da internet. O perfil com data de nascimento e de falecimento, trajetória, principais obras e atuação foi criada por dois advogados paulistas, em 2010, com o intuito de escarnecer de estagiários que usavam muito (e acredito que somente) da fácil e sedutora rede mundial.

Não sei qual será a conseqüência para os advogados, mas fica difícil acreditar em boa intenção quando a página ficou mais de cinco anos disponível, foi usada como fonte em documentos judiciais, acadêmicos e num documentário, sem que eles revelassem o engodo. Os usuários desta informação merecem um puxão de orelha, pois uma única fonte não é fundamento plausível para trabalhos de maior seriedade, eles deveriam ter ampliado a pesquisa. Ilustrando o tema proponho lembrarmos outros dois embusteiros, de áreas diferentes: Stephen Glass, jornalista do The New Republic de Washington e o falsificador de pinturas do norte da Europa Han van Meegeren (1889-1947).

Stephen Glass, jovem jornalista americano, nascido em 1972, era editor-associado da prestigiada revista The New Republic, a única que estava sempre presente no avião presidencial. Em 1998 ele teria coberto em Washington uma convenção de hackers, onde um imberbe expert em burlar sistemas de segurança de empresas, Ian Restil, de quinze anos, teria sido contratado por uma grande empresa para protegê-la de ataques, como os que ele teria supostamente perpetrado. Entre as frases transcritas por Glass estariam ‘Show me the Money’ (Mostre-me o dinheiro), I want a Miata (Eu quero um conversível) e ‘I want a trip to Disneyworld’ (eu quero uma viajem para a Disney). O artigo ‘Hacker haven’, publicado em maio de 1998, chamou a atenção do jornalista Adam Penenberg da Forbes digital, que sendo do ramo foi procurar alguns dos dados citados no seu buscador da internet e teve como resultado um redondo zero. Penenberg fez um contato direto com a The New Republic e com Glass e só conseguiu informações esparsas, e-mails que voltavam e telefones que caiam em caixas postais. Devemos lembrar que Stephen Glass era também colaborador de conceituadas publicações como Rolling Stone, Harper’s e George (a revista do falecido John Kennedy Jr). Glass foi demitido e toda a equipe do The New Republic, agora acordada, verificou a sua produção e chegou a inacreditável conclusão que, de 41 artigos publicados no veículo, 27 eram falsificações, parciais ou totais. Logo depois do escândalo Glass escreveu um livro sobre o caso The Fabulist, sem nenhum sucesso, já que seu forte era mentir, e não criar personagens e histórias a partir da imaginação, para ele era fácil distorcer a realidade e apresentá-la do seu ponto de vista esquizóide. O caso está debilmente apresentado no filme Shattered glass (2003), equivocadamente traduzido para o português como O preço de uma verdade, não se trata da verdade no filme; e o protagonista, o inexpressivo Hayden Christensen, não consegue construir o personagem Glass com uma credibilidade mínima. Adam Penenberg, o eficiente jornalista da Forbes, apurou devidamente o falso artigo e publicou o seu arrazoado com o título de Lies, damn lies and fiction (Mentiras, tremendas mentiras e ficção), que ele inicia assim: ‘É difícil desvendar uma mentira. E é mais difícil ainda provar que algo ou alguém não existe’. Este desabafo/aviso foi feito quando a internet comercialmente tinha meros três anos de existência.

Já o pintor holandês Henricus Antonius van Meegeren depois de formar-se na Academia Real de Haia obteve algum sucesso com suas pinturas, mas foi classificado por críticos como um copista do renascimento, que tinha um talento faltando, a originalidade. Cansado de tentar fazer o que já havia sido feito em arte, ele encontrou na falsificação seu objetivo de vida e especializou-se em fabricar ‘originais’ da idade de ouro da Holanda, especialmente Johannes Vermeer. Um exemplo, a suposta pintura original de Vermeer The supper at Emmaus foi vendida para um grande colecionador de Mônaco e acabou sendo exibida num museu em Rotterdam. A infelicidade de Meegeren foi ter vendido um Vermeer (falso) para o líder nazista Hermann Goring, que orgulhoso passou a exibi-lo na sua mansão Carinhall, perto de Berlim. Quando Goring percebeu que a Alemanha havia perdido a guerra, explodiu Carinhall e levou suas pinturas e objetos de arte para minas de sal na Áustria, onde elas foram descobertas pelos aliados. Meegeren foi identificado como o vendedor do desconhecido quadro de Vermeer e foi preso como colaborador. Para fugir da forca teve que revelar todas as suas falsificações e pintar um quadro inspirado na renascença na frente do júri, e foi absolvido. Para conhecer o caso de Meegeren vale a pena ler a excelente pesquisa feita por Frank Wynne que resultou no prazeroso livro Eu fui Vermeer.

De qualquer maneira Glass e Meegeren são estafadores e merecem estar em uma malta rasteira; sem originalidade e sem força poética de criação, escolheram copiar e distorcer a realidade e as obras alheias. Tenho a mesma opinião de Umberto Eco (1932-2016), o mau profissional presta um desserviço as categorias onde estão inseridos. Em seu último romance Número Zero, Eco cria a trama de um grupo de jornalistas, sem escrúpulos, que se põe a fabricar o número zero de um jornal que não tem nada de informativo ou investigativo é pura intenção de difamar, inventar, distorcer para chantagear políticos, empresários e inclusive o Vaticano. Este jornal levava a denominação de zero, pois não havia sequer a intenção de publicação, a sua existência nas profundezas de uma redação já bastava para alcançar o seu objetivo. Número zero apresenta conspirações verdadeiras e uma falsa, despertando no leitor uma desconfiança na tão apregoada isenção jornalística. E Eco vai além, traçando um paralelo diz que a internet deu oportunidade para que todos os que não têm nada a dizer, opinem sobre tudo o que não conhecem e realizem uma diatribe em tempo real.

Fomos surpreendidos com a revelação deste perfil falso, que se tornou referência e por isto ficou cada vez mais ‘real’, pensemos em nossas ações frente à enxurrada de informação que a internet, principalmente as redes sociais, nos brindam diariamente. A Wikipédia tenta se defender colocando um alerta de hoax (farsa) na página, depois de manter a mesma por anos; não convence e nem parece uma atitude séria. As pinturas falsas de Meegeren foram referendadas por colecionadores e por museus; os artigos chulos de Stephen Glass pelo próprio veículo onde ele trabalhava. Na esteira da perda de Umberto Eco, um dos grandes eruditos que a humanidade já teve, devemos desenvolver, como ele, uma postura crítica em relação às produções culturais que nos são apresentadas e procurar recebê-las com racionalidade e com um mínimo de desconfiança até que se comprove sua autenticidade, que pode ser realizada com pesquisa, contextualização, fruição e com parcimônia.

Publicado link: Assunto: boa notícia!http://www.estadao.com.br/noticias/geral,os-destaques-do-estadao-noite-desta-sexta-feira--26,10000018500


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