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Palmyra ou a cultura assaltada.


Na última semana de março de 2016 fomos informados que as forças do Exército Sírio retomaram a histórica cidade de Palmyra, que tinha sido dominada e seus templos e museu de sítio atacados pelo Grupo Terrorista Estado Islâmico. A imagem que se propagou pelo mundo foi a explosão do Templo de Baal, Bel ou Hadad, uma divindade semita dos Arameus, antigos ocupantes da cidade que se chamava então Tadmor, na língua aramaica (língua semita provavelmente falada por Jesus de Nazareth). O templo que fora reestruturado no século III da era cristã, voou pelos ares por ter sido feito pelos romanos e por retratar uma divindade de um infiel e inimigo,ou seja, os próprios sírios (?) que descendem na sua maioria deste grupo étnico (Arameus). Do templo parece que só sobrou algumas colunas e um portal externo, as fontes são claras, será difícil recuperá-lo ao antigo estado. Mas para mim a imagem (mesmo que seja só mental) que fica foi a decapitação do arqueólogo conservador de Palmyra Khaled Al-Assad de 82 anos, que durante 50 anos, a partir de 1963 cuidou e estudou as ruínas ancestrais. Respeitado internacionalmente como autoridade nos monumentos funerários que ai abundam, Khaled estudou história na Universidade de Damasco, fundada em 1923 a partir da Faculdade de Medicina que já existia desde 1903; faculdade onde estudou o ditador-presidente Bashar Al-Assad. Khaled, que foi torturado para revelar onde estariam algumas estatuas e objetos retirados do Museu de Sitio de Palmyra, teve sua cabeça cortada e seu corpo pendurado em uma coluna romana da cidade. Dois colegas de universidade, Bashar e Khaled, que tem o mesmo sobrenome, por serem do grupo minoritário dos alauitas, que são 15 por cento da população da Síria (que é na sua maioria sunita), tiveram atitudes tão opostas com a cultura e a história síria.

Em janeiro de 2012 estive em Damasco onde cheguei através de uma ponte aérea de Istambul, um trajeto de duas horas. Desembarquei no Aeroporto Internacional de Damasco, que é minúsculo e fica longe da cidade. Lembro de chegar diretamente andando do avião a um balcão, onde um funcionário que não falava nenhuma língua além do árabe pegou meu passaporte e o girava em vários sentidos sem conseguir ler absolutamente nada. A minha surpresa foi que ele não conseguia sequer ler o visto do Consulado Sírio, tirado uma semana antes na avenida paulista em São Paulo; que estava escrito em português, francês e árabe. Ele começou a digitar algo no seu monitor, que movia o cursor da direita para a esquerda e balbuciava: Brrrrasil? Fui salvo por uma passageira africana que falou comigo em francês e com ele em árabe e depois de algum tempo olhando minhas malas ali mesmo, entenderam que eu era professor e que aquelas máquinas fotográficas e computador eram materiais de um viajante e não de um jornalista (quanta ingenuidade). O aeroporto é todo térreo e na frente tem belos painéis com motivos geométricos árabes (não textos) e já se sai na calçada onde taxis velhos, dos quais não se adivinha a cor, já estavam esperando pelos pouquíssimos passageiros. Escolhi o que falava um rudimentar francês e dei o endereço do hotel no centro de Damasco, me lembro que o vidro do pára-brisa estava todo trincado e acho que um dos faróis deveria estar queimado, pois se via pouco da escura estrada de pista dupla, que estava, além disto, oculta pela neblina, que levava até Madinatul Yasmin, a Cidade do Jasmim, significado do nome Damasco. A primeira impressão que tenho de Damasco é a de uma cidade na escuridão e que está em construção, a maioria dos prédios do centro não tem tinta na parede, ficaram somente no reboque e as construções aparentemente ilegais (puxadinhos) abundam. Em contraste as avenidas são amplas, passei por muitos viadutos e alças rodoviárias, inclusive já dentro da cidade. O hotel, numa viela que dá na imensa avenida Shoukry Al Qouwatly, era o que aparecia na internet, com um pátio interno com videiras e mesas agradáveis e para a minha surpresa tinha rede de wi-fi, recebi minha senha logo depois de me registrar, e tinha uma televisão (somente ai no pátio), que eu percebi depois que exibia uma gravação ou DVD. A maioria da população não fala nenhum idioma além do árabe, mas a simpatia e a vontade de ajudar é imensa e com gestos acabam resolvendo os problemas mais imediatos. O francês é a melhor opção, pois ela ainda sobrevive ai já que o país foi durante muito tempo um protetorado francês.

Na mesma noite fui caminhar perto do hotel e encontrei a avenida 29 de maio e um grande cinema, Al-Dounia Cinema, com cartazes em árabe e nenhuma possibilidade de leitura para um ocidental. Na parede do cinema acima dos cartazes dos filmes vi duas fotografias, uma de Bashar Al-Assad de terno e outra de um militar com óculos escuros. A duas quadras do cinema deparei-me com uma praça com uma linda fonte iluminada e um edifício de mármore branco com colunas retas, lembrando uma construção Art-Nouveau, com uma imensa foto de Bashar, talvez uns doze metros, com o mesmo terno do cinema, e que fica a noite toda iluminada. A rua não estava iluminada e vários prédios também não, descobri que os que estavam, como o meu hotel, era porque tinham gerador próprio, pois a luz na capital era intermitente, isto em janeiro de 2012. No dia seguinte visitei o grande mercado - o Souq Al-Hamiduyan, que é bonito e imita as galerias de compras de Paris, com seu teto alto e corredor central que abriga as várias lojas. A maioria delas vende tapetes, tecidos, jóias (não preciosas), artesanato e alguma comida. Na saída do Souq está a praça da Mesquita Umayyad, com sua bela muralha e afrescos na fachada interna e pátio com o solo calçado com um mármore branco e brilhante, onde as famílias e casais ficam sentados em tapetes públicos, conversando depois de visitarem o interior do edifício. Nesta mesquita está, supostamente, a cabeça de João Batista, para os sírios o Profeta Yahya; há um recinto pequeno de mármore fechado com uma janela de treliça e dentro vemos um túmulo com tampa triangular onde estaria a relíquia. Umayyad fica ao lado da Cidadela de Damasco, outro ponto forte de visita.

Visitei algumas partes de Damasco e estava pensando em ir até Palmyra, mas fui desaconselhado pelos poucos informantes que consegui entender. Fui alertado para não ir para o norte do país, pois depois da Primavera Árabe, no ano anterior, os movimentos contrários a Bashar Al-Assad, que são a Al-Qaeda, a Frente Nusra e os Muhsin estavam atuantes na região, principalmente em Aleppo. Não se falava em Estado Islâmico na época já que ele supostamente se revelou somente (a partir da Al-Qaeda) em 2014.

O apoio de Bashar Al-Assad vem (vergonhosamente) do Hezbollah e do Hamas, lembremos que o Hezbollah libanês tem participação no parlamento do mesmo país e o Hamas na organização política da Faixa de Gaza. A União Soviética é o grande pilar de apoio de Bashar. Nas lojas do Souq e no restaurante onde almocei vi novamente a foto de Bashar em local de destaque, muitas vezes acompanhada do militar de óculos escuro, que identifiquei depois como sendo seu irmão Maher Al-Assad, Chefe da Guarda Republicana e General de carreira. Conversando com um professor da Universidade de Damasco descobri que Bashar não era o herdeiro preferido de Hafez Al-Assad (1930-2000), o filho que estava sendo preparado para assumir o país era Bassel Al-Assad (1962-1994), que era famoso por freqüentar o Folies Bergère e similares em Paris e dirigir conversíveis em alta velocidade. Numa manha em 1994 a pressa era tanta em chegar ao aeroporto de Damasco, e seguir para a esbórnia européia, que ele se estraçalhou numa rotatória da escura estrada e morreu, para tristeza do pai e indiferença do povo sírio. Hafez Al-Assad o patriarca da família tornou-se presidente (ditador na verdade) depois de um golpe de estado em que colocou na prisão o seu antecessor e colega de partido, do Baath – Partido Socialista (único), Neruddin Al-Atassi (1929-1992) que foi jogado na prisão sem julgamento e ficou nela 22 anos, até ser ‘libertado’ para tratar-se em Paris de câncer terminal; foi libertado em novembro e morreu em dezembro de 1992, na época nenhum parente foi localizado para falar da memória do mesmo.

Hafez Al-Assad era correligionário e amigo do Shah Reza Pahlavi (1919-1980) da Pérsia ou Irã, que foi colocado no poder por uma coalizão da Inglaterra e (nenhuma surpresa) da União Soviética. O pai de Reza Pahlavi, de mesmo nome, foi obrigado a abdicar em favor do filho em 1941,morreu no exílio e está enterrado no Cairo na Mesquita Al-Rafai. Ela também é chamada de Mesquita Real, e nela estão enterrados um profeta Ahmad Al-Rifai, do século XII, e Reza Pahlavi pai e filho; Reza Pahlavi, o filho, foi expulso de seu país (depois de assumir o lugar do par sem remordimentos) por uma ‘Revolução’, parecida com a Primavera Árabe, em 1979, mas que teve um desdobramento lamentável trazendo os aiatolás para o poder.

A família e a descendência é um fator sempre muito nomeado neste ambiente que se auto-considera real, mas basta investigar um pouco e vemos que é um discurso vazio de grupos que querem manter-se no poder. Bashar Al-Assad não tem nenhuma ligação emocional com o povo sírio, ele estava estudando na Inglaterra e foi o que sobrou para ocupar o posto de dono do país, colocado ali pelo seu pai que aniquilou metodicamente todos os opositores. A sua mulher Asma Al-Assad, ex-executiva do Deutsch Bank é tão superficial como a mítica Farah Diba (Imperatriz Consorte de Reza Pahlavi Filho) que era conhecida como a mulher com as jóias mais valiosas do mundo (em 1979). Logo depois de sair de Damasco li num jornal em Jerusalém, que alguns e-mails trazidos a público de Asma Al-Assad mostravam que ela estava preocupada com a troca das cortinas de seu palácio, enquanto o país estava mergulhado em uma sangrenta Guerra Civil.

Palmyra com seus templos e sarcófagos estava sendo destruída e saqueada sem que o Presidente sequer se lamentasse por isto, o desfecho trágico de 2015 foi um elo numa corrente. A violência de 2015 em Palmyra lembra o atentado no Egito, dentro da era Muhammad Hosni Said Mubarak (que se considerava herdeiro dos Faraós), ao Templo de Hatshepsut, rainha faraó da XVIII dinastia, em Luxor em 1997, quando 58 turistas foram metralhados e esfaqueados e algumas estátuas atacadas a marteladas. Este atentado mostrou também a misoginia presente entre estes grupos e células terroristas, eles escolheram o lugar com intenção de fechar o templo, muitas colunas com o rosto da rainha foram quebradas e ainda estavam em restauro em 2012. Não podemos esquecer também do ataque sofrido pelo Museu Nacional Iraquiano de Bagdá, depois da queda de Saddam Hussein (outro patriarca que dizia valorizar muito a descendência), que perdeu mais de 40 por cento de seu acervo em 2003 e só foi reaberto 12 anos depois, com o que restou e com algumas obras recuperadas, sem mais detalhes, já que o comércio de arte saqueada no oriente é muito poderoso na Europa e na América do Norte.

Desejo que Palmyra volte a exibir para o mundo os seus templos e que seu museu seja recuperado, da melhor maneira possível, mas a insegurança e a falta de organização mínima que presenciei em 2012, no aeroporto e nos postos governamentais de fronteira com o Líbano, para onde fui depois de desistir da visita a Tadmor/Palmyra, me fazem temer pelo destino deste poderoso local e de seus protetores. Um país com mais de seis mil anos de história merecia mais ajuda internacional, para remover do poder um fantoche russo que só tem feito mal para esta grande memória ancestral e para o povo que a criou.


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