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Contextualização sobre a defesa de um ponto de vista: Caravaggio de Derek Jarman


Os comentários iniciais dos próximos parágrafos nada têm de acadêmico, mas contextualizam minha relação com a obra do precursor do Barroco pictural histórico - conhecida e admirada por mim desde a infância, por meio de livros de arte em minha própria casa e nas bibliotecas do Instituto de Educação “Assis Brasil” e da Universidade Federal de Pelotas - e a obra do cineasta neobarroco contemporâneo.

Em agosto de 1993, sete anos após haver assistido ao filme “Caravaggio”, de Derek Jarman, em Porto Alegre, quando de seu lançamento, e recém-chegado a São Paulo para cursar mestrado em Comunicação e Semiótica, na PUC, voltei a assistir ao filme, a convite do amigo e também apreciador das obras de ambos os artistas, que retornava ao Brasil para viver nesta cidade, o escritor Caio Fernando Abreu, companheiro de vernissages, lançamento de livros, teatro e cinema, numa época de trânsito menos intenso e filas menores nas salas de exibição e exposições de arte. Saímos do Belas Artes, ou do então Espaço Unibanco de Cinema (hoje Itaú), não me recordo, em direção ao Viena do Conjunto Nacional, onde jantamos e conversamos longamente sobre a obra dos artistas citados. Caio seduzido pela tensão dramática entre as personagens, pela estrutura narrativa em flashbacks e pelos elementos temporalmente exóginos a ela e eu, pelo intenso contraste de cores e valores tonais da pintura, que o cineasta tão bem soube interpretar, e sobretudo pela recriação, com os atores/modelos do pintor, em terceira dimensão, da dinâmica espacial única das obras de Caravaggio, à qual, nos vários livros e textos críticos que li sobre elas, jamais vi referência. Sobre estes últimos elementos tratarei aqui brevemente.

Em 2004, apresentei-o para alunos da Faculdade de Letras, Artes, Arquitetura e Ciências da Comunicação e Educação, de que era professor, na Universidade São Judas Tadeu, como parte de um ciclo de cinema, seguido de debate a partir das idéias do filósofo Friederich Nitzsche (1844-1900), em “O nascimento da tragédia”, obra em que defende ser a história da arte uma sucessão alternada de estilos “apolíneos” e “dionisíacos” (o Barroco nesta polaridade). Analogamente, propus que vida e obra de Caravaggio alternavam pulsões (no sentido freudiano) eróticas e tanáticas.

Este modesto trabalho não pretende a inclusão de dados biográficos ou historiográficos que não sejam essenciais para a compreensão das análises nele apresentadas. As principais obras de Caravaggio – todas em óleo sobre tela -- foram por mim agrupadas segundo critérios específicos para as referidas análises e as mesmas, em cada grupo, foram citadas em ordem cronológica, com dimensões e data de execução, salvo quando houve necessidade em contrário. O filme foi analisado do ponto de vista de sua estrutura fabular e sintática e do modo peculiar como interpreta vida e obra do pintor.

Algumas considerações sobre a obra de Michelangelo Merisi da Caravaggio

Um dos cinco filhos de Fermo Merisi, arquiteto decorador do Duque de Milão, marquês de Caravaggio, vila onde passa a infância, nasceu em 1571 e passou dificuldades após a morte precoce do pai. Precocemente também manifestou suas habilidades artísticas, tornando-se protegido do Príncipe de Colonna, por intermédio de quem se fixa em Roma, onde obtém notoriedade. Entretanto, envolve-se em escândalos e, acusado pela morte de um adversário no jogo de péla (baralho), refugia-se sucessivamente em Nápoles, Malta, Messina e Palermo, retorna a Nápoles, onde, envelhecido e doente, aguarda indulto papal para retornar a Roma, mas é encontrado morto, aos 39 anos, em 1610, na praia de Porto Ercole, próxima da Cidade Eterna, antes de recebê-lo. Foi considerado por muitos “o pintor mais misterioso e revolucionário da história da arte” (LAMBERT, 2001:07) e influenciou artistas como Delacroix, La Tour, Rubens, Rembrandt, Velázquez, Géricault, Courbet, Manet, apenas para citar alguns dos mais importantes (SPROCCATTI: 1997).

Apesar disto, seu nome foi banido por quase três séculos da história da arte, fato atribuído à “vida dissoluta” que levara.

Muito se fala do chiaroscuro caravaggiano, dos múltiplos focos de luz a iluminar pontualmente as personagens históricas - representadas tendo como modelos figuras populares - que interagem em suas pinturas, frequentemente em momentos cruciais de cenas que pressupõem um antes e um depois, fatos em sequência narrativa, portanto, para as quais corroboram uma infinidade de detalhes. Óleos como “Os batoteiros” (91,5 x 128,2 cm, 1594-1595), “A vocação de São Mateus” (322 x 340 cm, 1599-1600), “A conversão de Madalena” (100 x 143,5 cm, cerca de 1598), “A ceia em Emaús” (141 x 196,2 cm, 1601), “A crucificação de São Pedro” (232 x 201 cm, cerca de 1600) exemplificam à maravilha tal percepção. Menos um pouco, os alegóricos “O martírio de São Mateus” (323 x 343 cm, 1599-1600), “A conversão de São Paulo” (237 x 198 cm, 1600-1601), “A deposição ao túmulo” 300 x 203 cm, 1602-1603) e “As sete obras de misericórdia” (390 x 260 cm, 1606) -- a primeira e a última destas obras pretendendo mais a teatralidade simbólica do que a verossimilhança enquanto cena.

Ainda apresentam a mesma expressão peculiar de luminosidade as de estrutura fortemente escultóricas (assim as classifico porque nelas destacam-se as figuras sobre fundos quase amorfos, a ponto de neutralizar a sugestão de movimento que as cenas, em si, comportam), como “Judite e Holoferne” (145 x 195 cm, 1599), “São Jerônimo escritor” (112 x 157 cm, cerca de 1606), “A morte da virgem” (369 x 245, cerca de 1606), “A Nossa Senhora do rosário” (364,5 x 249,5, 1607), “A flagelação de Cristo (286 x 213 cm, 1607) e “A degolação de São João Batista” (361 x 520 cm, 1608).

Menos movimento narrativo existe ainda nas cenas religiosas com alto grau de realismo, a ponto de se tornarem comezinhas, como “Nossa Senhora dos peregrinos” (260 x 150 cm, 1604-1605) e “Nossa Senhora dos palanfreneiros” (292 x 211 cm, 1605-1606). Para esta segunda característica contribuem os tipos físicos dos modelos retratados, sempre pessoas do povo, recrutadas nos ambientes “pouco recomendáveis” frequentados pelo artista, algo que é sabido, desagradava os religiosos que as encomendavam, malgrado tais escolhas, por admirar-lhe a técnica, o domínio da anatomia e da representação realista dos mais diversos materiais e superfícies.

Os inúmeros retratos – aqueles com uma só personagem - de figuras mitológicas, bíblicas, ou de personalidades proeminentes e também tipos humanos da própria época do pintor não apresentam narratividade eloquente, são bem mais descritivos. Mesmo a “Medusa” (rotonda de diâmetro irregular, 60 x 55 cm, 1598-1599) parece ela própria petrificada no interior de seu simbolismo intrínseco. Quanto a este último grupo de obras, é importante registrar alguns auto-retratos: os propriamente tais, ou “clássicos” - “O pequeno Baco doente” (67 x 53 cm, 1593-1594) e “Vaidade”, ou “Auto-retrato ao espelho”, obra perdida que se vislumbra em calcogravura anônima de sua mesma época (a julgar pela aparência do pintor, dos anos finais de sua vida) -- e os inclusos em pinturas com outras personagens: no “Concerto de jovens”, também chamado “Os músicos” (92 x 118,5 cm, 1595-1596), na já citada “O martírio de São Mateus”, e em “David segurando a cabeça de Golias” (125 x 100 cm, 1605- 1606), o autor como a segunda personagem.

Uma exceção à estaticidade proposital dos retratos é “Rapaz mordido por um lagarto”, (65,8 x 52,3 cm, cerca de 1595), obra com uma só personagem, mas que apresenta o movimento e a expressão de dor da mesma, causada por um agente não humano – portanto isenta de drama. Esta obra é uma espécie de “instantâneo em Polaroid” (ou foto digital instantânea, embora não seja esta puramente uma transformação tecnológica, pois seus efeitos são diferentes) e talvez a mais citada para exemplificar a característica inovadora de um enquadramento pré-fotográfico da obra caravaggiana, tão decantado pelos analistas de suas obras, o qual tanto contribuiu e continua contribuindo para o intenso “realismo” de sua obra pictórica.

Outras obras muito conhecidas não foram aqui citadas porque não as considero típicas de nenhum destes grupos nas quais as reuni, sob o ponto de vista do movimento representado, narrativo, portanto, segundo minha própria observação (por reproduções em livros impressos e internet, além de pessoalmente aquelas que estiveram no MASP em 2013). Algumas, embora insinuem narrativas, sugerem pouco movimento desta natureza e, por terem os últimos planos matizados e com pouco contraste relativamente às figuras centrais, não se configuram como escultóricas, por exemplo, tampouco são retratos.

Cumpre ainda dizer que a paisagem dificilmente aparece na obra de Caravaggio, exceções à “O repouso durante a fuga para o Egito” (135,5 x 136,5 cm, cerca de 1596-1597) e “O sacrifício de Isaac” (segunda versão,104 x 135 cm, 1603). Creio que esta escolha estética pelo primeiro plano, ao contrário do que poderiam pensar críticos distraídos ou mal-intencionados, não se configura num desprezo pela perspectiva, que ele domina com maestria, nem pelo detalhe – suas figuras os exibem abundantemente em panejamentos, rendas, tecidos com texturas diversas, pele (musculatura e veias sob ela!), cabelos, manchas em flores e frutas, nas “orgânicas”, e brilhos, suavidade, dureza, transparências nas de objetos.

A proximidade da figura humana em relação ao espectador contribui para o já referido e tão falado “enquadramento fotográfico” - anterior à invenção da primeira forma não artesanal de produção de imagens -, acentua a dramaticidade e põe o homem como núcleo dos conteúdos plástico-visuais, como também (e diversamente) da própria cultura barroca que se iniciava, a qual, contrariamente, enfatizou a miséria humana em contraste com a plenitude divina. Para Caravaggio, o homem é senhor das próprias escolhas e, portanto, do próprio destino, mesmo quando impotente diante das circunstâncias da vida, provocadas por suas próprias ações ou pelas de outros homens e o modo como reage a elas, conforme atestam seus dados biográficos.

Mesmo seus anjos são tremendamente humanos, como o que ampara a personagem título de “São Francisco em êxtase”, ou “São Francisco recebendo os estigmas” (92,5 x 127,8 cm, 1595), obra que inaugura período de grande êxito na carreira de Michelangelo Merisi e que, segundo o escritor Dominique Fernandez, marca o nascimento da arte plástica Barroca, conforme relata Gilles Lambert em “Caravaggio – 1571-1610”, (2001:47); o do primeiro “O sacrifício de Isaac” (116 x 173 cm, 1596), menino corado cujas asas são quase que apenas sugeridas e em cujo rosto iluminado sobre um dos quatro pontos áureos do plano de representação está o principal elemento compositivo, pois a pouca tensão da cena está no olhar que troca com Abraão e não na faca segurada por este ou na plácida expressão de seu filho que seria imolado, diferentemente daquela apresentada na pintura homônima de 1603 (104 x 135 cm), a da paisagem ao fundo, anteriormente citada, na qual poderosas diagonais descendentes conduzem o olhar do espectador para seu rosto apavorado. Temos também o de “São Mateus e o anjo”, primeira versão, (223 x 183 cm, 1602), obra destruída na queda de Berlim, no final da Segunda Grande Guerra, a qual provocara escândalo e fora recusada para a igreja de S. Luigi dei Francesi, justamente por aquele motivo; e ainda o “anjo profano”, Eros ou Cupido, em “O Amor triunfante” (156 x 113 cm, 1601-1602), personagem não tão bela como os citados, mas carregada de uma “sensualidade” adolescente (embora na origem mitológica Eros fosse eternamente criança e “inocente”). Este causou escândalo por ter sido considerado paródia da escultura “Vitória”, de Michelangelo Buonarotti (1475-1564), ou do São Bartolomeu de “O juízo final” da Capela Sistina, do mesmo autor, e teria a intenção de revelar a homossexualidade deste, (apud LAMBERT,op. cit.:69). Tem a cabeça inclinada, mas encarando o espectador e, nu, a carnação em luz e sombra e as asas de longas plumas cinzentas, isto é, sem a pureza simbólica do branco, características que certamente contribuíram para o efeito logrado. Outros anjos, que também nada têm de sobrenaturais, são menos interessantes do que os citados, embora nada lhes devam quanto à qualidade pictórica.

Modalidades de diálogo intertextual e intersemiótico

As relações que se podem estabelecer entre duas obras de diferentes linguagens podem ser consideradas por diversos aspectos, histórica e conceitualmente configurados por diferentes teorias, de épocas e autores também diversos. A mais frequente, mais antiga e muito encontradiça entre obras literárias de diferentes épocas, mas não apenas entre elas, é, indubitavelmente, a paródia, definida por Linda Hutcheon como “uma forma de imitação caracterizada por uma inversão irônica, nem sempre às custas do texto parodiado” (1989:17), também como “repetição com distância crítica, que marca a diferença em vez da semelhança” (idem), especificando que esta “não se destina a assinalar unicamente a similaridade”. [pois] Não se trata de uma questão de imitação nostálgica de modelos passados. É uma confrontação estilística, uma recodificação moderna que estabelece a diferença no coração da semelhança” (idem:19), acrescentando que a paródia tanto pode confrontar-se tanto com o conteúdo semântico de uma obra artística, quanto com sua estrutura, ou ainda com os modelos estruturais e estilísticos de uma determinada época ou gênero aos quais aquela pertença. Note-se que Hutcheon admite como paródia também a obra que dialogue com obras de outras séries artísticas e gêneros diversos.

HIDALGO (2010: 82) resume o modus operandi e as técnicas mais freqüentes da paródia, segundo a autora citada:

“Elementos que aparecem em obras que retomam, modificam, acrescentam significados, constroem, segundo Linda Hutcheon, o hipertexto, que abrange as técnicas da citação, citação em abismo (mise-en-abyme), referência. O hipertexto paródico incorpora os sentidos do referencial e os transforma em outro elemento cognitivo.”

Outro tipo de relação entre obras, muito frequente desde o teatro romântico, do século XIX, e mais ainda após o nascimento da narrativa cinematográfica, mormente o cinema falado, nas primeiras décadas do século XX, manifesta-se como técnica e conceito: “adaptação”, geralmente de obra literária para teatro ou cinema, após a escritura de um “roteiro adaptado”, aquele produzido por meio de um processo criativo tradicionalmente definido como “(A) transformação [que] é a manipulação de ideias, dos temas e dos tópicos, a variação dos mitos, [a qual] é o sistema mais especificamente clássico da criação literária” (COMPARATO, 2009:47). Também foi apresentada como “‘A habilidade de fazer corresponder ou adequar por mudança ou ajuste’ - modificando alguma coisa para criar uma mudança de estrutura, função e forma que produz uma melhor adequação.” (FIELD, 2001:174).

Parece-me que a diferença mais marcante entre a paródia e a adaptação é que a segunda, necessariamente, pressupõe a mudança de uma linguagem para outra, considerando obrigatoriamente as especificidades de meios expressivos, instrumentos e técnicas de construção da “obra adaptada”, ao passo que pode existir paródia entre duas obras da mesma linguagem: literária, musical, teatral etc.

Aqui considero oportuno referenciar o conceito processual, corrente nas artes plásticas contemporâneas, denominado “releitura”, o qual compreende a existência de uma “obra motivadora” - aquela que se pretende reler, ou seja, sobre a qual se quer apresentar um novo ponto de vista, destaque ou atualização - e uma “obra motivada” - aquela que realiza tais intenções de um artista que se coloca em diálogo com o autor da primeira a partir da obra “original” deste. Caracteriza a releitura um alto grau de independência da “obra motivada” relativamente à “obra motivadora”. Note-se, entretanto, que, justamente por esse motivo, é comum apresentá-las simultaneamente aos espectadores, ou quando isso não é possível, expor a “obra motivadora” reproduzida fotograficamente ou em vídeo, se for mais adequado. Também é mais comum a releitura entre obras de mesmo gênero, ou de gêneros semelhantes.

Creio que podemos classificar como releitura a obra do artista canadense nascido em 1946, Jeff Wall, “O quarto destruído”, fotografia de 1978, a qual, segundo Will Gompertz (2013:373), constitui “sua versão pós-moderna da pintura de Delacroix, ‘A morte de Sardanapalo’ [1827] em meticuloso detalhe”. O raciocínio de Gompertz ratifica minha visão:

“Obviamente, ter conhecimento das alusões permite uma melhor apreciação da fotografia de Wall. Mas e se você não souber nada disso? Que acontece se você tiver entrado numa galeria e tiver topado com a obra por acaso, sem saber de sua relação com A morte de Sardanapalo? Bem, ela continua sendo uma imagem da vida moderna e um comentário poderoso sobre ela, com uma composição e um uso da cor intrigante. Mas a verdade é que a arte pós-modernista recompensa o conhecimento mais ou menos como palavras cruzadas cifradas, em que a compreensão decorre da solução do enigma.” (375)

Em comum entre as duas obras, a visão de um quarto com índices de violência: na primeira, escravos, mulheres e cavalos do rei oriental da Antiguidade, Sardanapalo, massacrados por ordem dele mesmo, que a tudo assiste de sua cama luxuosa no alto centro-esquerdo da composição; na segunda, o quarto simples de uma prostituta, vazio e vandalizado, conforme nos relata Gompertz. Note-se que há entre a pintura e a fotografia elos de ordem temática e também visual, portanto, elementos narrativos e estruturais, como se espera de uma releitura propriamente dita. No caso, o canadense “atualizou” a cena, do ponto de vista de uma “atemporalidade” ou permanência da violência da Antiguidade aos nossos dias.

Processo análogo aos citados acima, embora certamente muitos não o considerem como tal, são as formas de tradução de obras artísticas, textuais ou de quaisquer outras linguagens.

Evidentemente que não a tradução de textos acadêmicos, científicos, comerciais, jurídicos, técnicos ou de outra tipologia não artística, pois estão construídos com base na função referencial da linguagem, definida pelo linguista Roman Jakobson como prevalente naqueles (textos) centrados no “contexto”, informacional da comunicação, isto é, no referente mesmo da mensagem, a “realidade” - existencial, experiencial, factual, mental - apreensível por remetente e destinatário da mensagem (1977:123), cuja tradução não carece de recriação artística.

Por outro lado, os textos artísticos, aqueles com predominância da função poética da linguagem, isto é, centrados na sua própria estrutura singular - manifesta em elementos como figuras de linguagem (paronomásia, metáfora, hipérbole, personificação, dentre outras), efeitos sonoros (aliteração, assonância, rimas, por exemplo) e rítmicos (ictos, versos e estrofes) -, transmitem informações estéticas únicas, cuja tradução requer que se os recrie com mínima perda das mesmas para que sejam traduzidos de um para outro idioma, por exemplo. Segundo Albert Fabri, citado por Haroldo de Campos no celebérrimo ensaio “Da tradução como criação e como crítica” (1992:31-63), a informação estética tem alto grau de “fragilidade”, pois “transcende a informação semântica”, pela sua grande complexidade e originalidade única. Manifesta-se Campos:

“Então, para nós, tradução de textos criativos será sempre recriação, ou tradução paralela, autônoma porém recíproca. Quanto mais inçado de dificuldades esse texto, mais recriável, mais sedutor enquanto possibilidade aberta de recriação. Numa tradução dessa natureza, não se traduz apenas o significado, traduz-se o próprio signo, ou seja, sua fisicalidade, sua materialidade mesma (propriedades sonoras, de imagética visual, enfim, tudo aquilo que forma, segundo Charles Morris, a iconicidade do signo estético, entendido como signo icônico aquele ‘que é de certa maneira similar àquilo que ele denota’). O significado, o parâmetro semântico, será apenas e tão-somente a baliza demarcatória do lugar da empresa recriadora. Está-se pois no avesso da chamada tradução literal.”(35)

Aqui Campos cria o conceito de “transcriação”, aplicável à tradução criativa de textos estéticos, sobretudo de poesia, de um idioma para outro.

Convém lembrar que o já citado Jakobson estabelecera no texto “Aspectos lingüísticos da tradução” (op. cit: 63-72) seus três tipos básicos e incontestáveis:

“Distinguimos três maneiras de interpretar um signo verbal: ele pode ser traduzido em outros signos da mesma língua, em outra língua, ou em outro sistema de símbolos não-verbais. Essas três espécies de tradução devem ser diferentemente classificadas:

  1. A tradução intralingual ou reformulação (rewording) consiste na interpretação dos signos verbais por meio de outros signos da mesma língua;

  2. A tradução interlingual ou tradução propriamente dita consiste na interpretação dos signos verbais por meio de alguma outra língua;

  3. A tradução intersemiótica ou transmutação consiste na interpretação dos signos verbais por meio de sistemas de signos não-verbais. (65)

Anos mais tarde, Julio Plaza publicou “Tradução intersemiótica” (1987), obra na qual estabelece uma tipologia trina para este tipo de tradução - a partir dos três tipos de signos descritos pela Teoria Geral dos Signos, do matemático, filósofo e lógico americano, Charles Sanders Peirce (1839-1914), criador da mais abrangente das teorias semióticas, uma vez que não se constrói sobre base estritamente lingüística e, por isso, não considera como signo apenas o do tipo convencional, mas também os motivados por semelhança e contiguidade. Plaza denominou-as “tradução icônica, tradução indicial e tradução simbólica”, classificação que julgo desnecessário especificar aqui. Mas convém explicitar que a obra citada alarga o conceito de “tradução intersemiótica”, de Jakobson, ao admitir que esta pode incidir sobre obras de arte de tipos vários, não apenas verbais, isto é, pode-se traduzir de uma música instrumental a desenhos, pinturas, gravuras, esculturas, e todos os gêneros tradicionais das artes plásticas, além dos modernos e contemporâneos, como instalações, happenings, performances e outros; construções arquitetônicas; balés e coreografias tradicionais ou contemporâneos; como também produtos de todas as manifestações artísticas que incluem a palavra, como canções, HQs, óperas, peças teatrais, filmes etc.

Aqui acrescento que o conceito contemporâneo de “texto” extrapola o verbal e estende-se a outras mensagens organicamente construídas, sejam visuais, sonoras ou híbridas, entendidas como “texto semiótico”, ou seja: mensagens articuladas compostas de informações artísticas por meio de signos de qualquer natureza ou tipologia.

Ouso afirmar que o filme “Caravaggio”, de Jarman, constitui efetivamente uma tradução intersemiótica e não uma paródia moderna da obra do pintor italiano. Para que assim seja, não é preciso que o cineasta conhecesse a teoria estabelecida por Plaza, sequer que conhecesse a definição jakobsoniana. Analisemos alguns elementos pontuais, alicerces da estrutura das obras de ambos os artistas.

“Caravaggio”, o filme: singularidades da recepção

Fotografa do filme Caravaggio de Derek Jarman, 1986.

Jarman conseguiu, tal qual Caravaggio, escandalizar muitos espectadores, desde o lançamento do filme em 1986. Alguns porque desconheciam a vida contrastante do pintor-personagem, que freqüentava os bordéis e estalagens mais sórdidos de Roma, alternadamente com o palácio de um cardeal (Francesco Maria Del Monte, ligado aos Médici e com bom trânsito no Vaticano) e outros da alta nobreza italiana; que se interessava por prostitutas e homens simples, dos rústicos aos muito jovens e delicados; que talvez se tenha prostituído na adolescência e na maturidade e também pago prostitutas e michês (conforme sugerido pelo cineasta); que jogava a dinheiro e duelou mais de uma vez por se julgar enganado, ferindo e até matando um oponente. Outros ainda chocaram-se com a relação amorosa triangular entre Caravaggio e Ranuccio e a amante dele, a prostituta Lena, marcada pelo jogo sensual e de poder e ciúme entre os dois homens, apresentado no filme nas cenas em que o casal servia de modelo para obras de caráter religioso. Ela representou “Santa Catarina de Alexandria” (173 x 133 cm, cerca de 1598), Judite (obra citada) e mesmo, depois de morta, a Virgem de Nazaré (idem). Ele posou para um dos São João Batistas (Caravaggio pintou o santo por três vezes), para a figura central de “O martírio de São Mateus” (ibidem) e outras personagens.

Houve também aqueles espectadores, talvez não em menor número, que se chocaram com a linguagem underground do cinema de Jarman, a qual nesta obra específica inclui sons ambientais e objetos de séculos posteriores (máquina de escrever, calculadora eletrônica, telefone, motocicleta, caminhão, figurinos do século XX e outros), quebrando a verossimilhança das narrativas fílmicas mais tradicionais.

O filme como construção ficcional de uma personagem histórica

Uma das virtudes da obra de Derek Jarman é, sem dúvida, estruturar a narrativa a partir de momentos cruciais da vida de Caravaggio (interpretado por Nigel Terry e também por Dexter Fletcher – adolescente – e Noam Almaz – menino -), mas principalmente, mostrá-lo no atelier, desenhando sem quadrícula sobre telas imensas e pintando vigorosamente algumas de suas obras mais importantes, pois é na concretude de seu fazer artístico que alcança expressão como artista e como homem. Seus sentimentos e pensamento crítico sobre a religiosidade, os costumes e a cultura de sua época manifestam-se inequivocamente no tratamento que dá à matéria pictórica e aos temas das encomendas que obtém, a ponto de algumas vezes vê-las rejeitadas pelos que as solicitaram, mas sempre adquiridas por outros compradores.

A película inicia-se com o artista pintando e, em seguida, desloca-se para o momento em que o pintor leva da casa de uma família de camponeses, mediante uma quantia em dinheiro, um menino mudo, que não conseguiria aprender o ofício de pastor de seus familiares, para ser seu valete e ajudante de atelier. Ainda criança, Jerusaleme (o menino Emile Nicolaou), começa a aprender com o artista tarefas domésticas e o preparo de telas e tintas a óleo para pintura. Michelangelo parece afeiçoar-se verdadeiramente a ele que, em momentos difíceis da vida do artista, como serviçal, é seu único apoio, movido por gratidão. Entretanto, não há registros de sua existência real.

Jarman recria, em sequência cronológica, sempre a partir de lembranças narradas em primeira pessoa, que em alguns momentos parecem sonhos do pintor moribundo em seu leito derradeiro – licença poética, pois sabe que foi encontrado morto na praia, por assassinato, afogamento ou doença, os biógrafos não o relatam, talvez à época não o se tenha sabido -, cuidado por Jerusaleme adulto (Spencer Leigh), alguns dos principais momentos da vida do pintor, tendo sempre como referência suas obras mais importantes desde a chegada a Roma, ainda muito jovem.

Alguns dos principais episódios da vida de Caravaggio são, mediante este recurso mnemônico da personagem principal, mostrados em ordem cronológica. Destacam-se recorrentemente em tais lembranças, mormente no delírio final, a menina Ceccilia (atriz: ?) e o jovem Pasqualonne (ator: ?), que o filme dá a entender serem seus irmãos - o segundo bem mais velho, que o teria acompanhado a Roma e com quem teria tido, ao menos na ficção, suas primeiras experiências sexuais. Assim, Jarman contribui, porém sem o peso da censura dos críticos contemporâneos ao artista e de alguns historiadores de séculos seguintes, para a manutenção da personagem mítica “gênio de vida dissoluta” - solitário que vive simultânea e paradoxalmente a transcendência da criação artística e a concretude das paixões carnais, consciente delas, mas sem conflito interior flagrante.

Encontrado pelo Cardeal Del Monte (Michel Gough), doente em hospital de caridade, o jovem pintor torna-se seu protegido após curado, época em que pinta “O jovem Baco convalescente” (citado) e diversas outras obras, e por intermédio de quem conhece Scipione Borghese (Robbie Coltrane), para quem pinta algumas encomendas em período posterior.

Já maduro, aparecem algumas contendas em que o pintor se envolve, no espaço cênico da estalagem, onde conhece o lutador Ranuccio (Sean Bean), por quem se interessa vivamente, e de quem presencia uma luta vencida e a quem oferece uma moeda de ouro por prêmio, comemorada pelo presenteado com Lena (Tilda Swinton). Ambos tornam-se então modelos do pintor e, enquanto posava para “O martírio de São Mateus”, Ranuccio é cortejado pelo artista que lhe dá, uma a uma, várias moedas de ouro, que este guarda na boca. Até que o pintor coloca uma moeda na própria boca para que o modelo pegue-a com a dele, o que ele não exita em fazer, despertando o ciúme de Lena. Enquanto isso, Jerusaleme cumpre seu papel de assistente dedicado, preparando as tintas que Michele utilizava.

Amor Vincit Omnia, Caravaggio, 1601-1602.

Algum tempo depois, surge a contorcionista Pepa (Archibald), garota andrógina que posa para “O amor triunfante”, (Eros alado, obra já citada), revelando entre os objetos de atelier, um par de asas de armação que contribuíam para que o pintor visualizasse a cena de que a modelo fazia parte, podendo estruturar luz e sombra com veracidade. Esta é uma das características interessantes do filme do ponto de vista de quem faz pintura hoje: mostrar a construção cênica das pinturas caravaggianas, conforme acontecia de fato no ateliê dele e, provavelmente, nos de outros pintores. Realismo não se obtém apenas de imaginação, mas com observação factiva do real: modelos-vivos, luz e sombra reais etc. Inclusive, o cavalo que teria sido usado para a execução de “A conversão de São Paulo” (citada) aparece em uma das cenas seguintes.

Lena ganha um belo vestido, um par de brincos e é convidada pelo artista para acompanhá-lo à exibição da pintura de Eros, em salão com iluminação bruxuleante, contíguo às catacumbas do Vaticano, num espaço misterioso em que várias personagens aparecem fantasiadas, dentre elas, (supostamente) o Papa, vestido de sátiro. Na ocasião, Lena conhece o cardeal Borghese e deixa o salão em sua companhia, tornando-se amante do mesmo. Meses depois, aparece no atelier de Caravaggio, escoltada por três homens com vestimenta atual, e declara estar grávida, desagradando Ranuccio, que se supõe o pai da criança, mas Lena declara que esta seria “filha da riqueza”. Dias depois, ela é encontrada afogada no rio Tibre. Ranunccio é preso, mas convencera Caravaggio de sua inocência argumentando que o cardeal, sobrinho do Papa, deveria tê-la feito assassinar para evitar escândalo. Michelângelo encontra-se pessoalmente com Scipione Borghese e o Papa, pedindo-lhe a soltura do amante preso, por crê-lo de fato inocente. Obtém-na, mediante a promessa de realizar um retrato do pontífice em tempo reduzido, e recebe seu amante no atelier no dia seguinte, quando ele comemora terem “enganado” a todos, declarando ao pintor haver matado Lena, “para que ela não mais estivesse entre eles, que poderiam viver livremente seu amor”. Caravaggio, sorrindo, aproxima-se para beijá-lo, mas, com o velho e inseparável punhal, corta-lhe a jugular e deixa que ele escorregue entre seus braços até cair morto no chão.

Retorno ao quarto do pintor moribundo, quando ele delira, vendo-se menino, trajado como anjo, com Pasqualonne e Ciccilia, observando uma “procissão de Cristos” de túnicas negras carregando suas cruzes. Lembra-se, repetindo apenas a própria fala, de quando tocou o pênis do irmão e masturbou-o pela primeira vez. Momento importante este flashback, porque traz à cena o estigma da homossexualidade, conotando, talvez, culpa por razões religiosas, uma das contradições da personalidade do artista, segundo o cineasta.

Desperto violentamente, momentos antes de morrer, luta com um sacerdote que tentava fazê-lo segurar um crucifixo para receber a extrema-unção. Joga-o longe e sussura ao ouvido de Jerusaleme para que lhe dê o punhal que possuía desde a adolescência, quando fora “confiscado” por Del Monte e trocado pela pintura “O tocador de alaúde” (100 x 126,4 cm, 1596-97), em cuja lâmina mandara gravar, ainda àquela época, “sem esperança, sem medo”. Com ele nas mãos, morre. Jerusaleme chora copiosamente e, mais tarde, três carpideiras e dois homens portando velas participam dos ritos finais. Jerusaleme sopra o apito que a mãe lhe dera, mas nele não há mais som. Jerusaleme sorri.

Resumido assim o núcleo central da fábula, posso dedicar-me ao exame de algumas características sintáticas, além dos citados foco narrativo em primeira pessoa, pelo protagonista da ação, e dos recorrentes flashbacks, dos quais apresentei apenas aqueles estritamente necessários para a compreensão do fluxo acional, ou ritmo do relato, quase todo lento, compassado.

Estruturalmente, temos como preâmbulo a chegada do jovem Michelângelo a Roma e sua “proteção” pelo Cardeal Del Monte, período em que realiza as primeiras obras e obtém os primeiros êxitos, tornando-se conhecido; o início da ação quando, maduro, “compra” o menino Jerusaleme; e a instauração do conflito no momento em que, anos mais tarde, conhece Ranuccio e Lena, e entre eles desencadeia-se um relacionamento aparentemente harmônico, com manifestações de ciúme dela e, posteriormente, dele (quando é presenteada com o vestido e as jóias com que acompanharia o pintor à festa no Vaticano, embora Ranuccio também tenha ido, como Pepa - a modelo da obra exposta - e Jerusaleme). O crescimento da tensão narrativa dá-se com o assassinato de Lena, o qual não é mostrado, a execução da obra “A morte da Virgem” (citada), em que seu corpo é usado como modelo; o choro copioso do protagonista com o mesmo nos braços; a prisão de Ranuccio e a intercessão de Caravaggio. O clímax ocorre com o reencontro dos dois homens, a confissão do primeiro e seu assassinato, como vingança por Lena, pelo segundo. O desfecho ou desenlace ocorre no retorno ao quarto de Caravaggio moribundo, quando recusa o último sacramento e morre segurando, em vez de o crucifixo, símbolo da religião, o punhal, símbolo de sua vida de paixões desregradas, com a legenda que ele escolhera para ela, gravada na lâmina.

O que há de mais revolucionário no filme de Jarman não é, evidentemente, o uso dos inúmeros flashbacks, técnica cinematográfica herdada da literatura antiga. A poesia épica, da qual provém o gênero narrativo, é cheia deles, desde a “Ilíada” e a “Odisseia”, de Homero, passando, em Língua Portuguesa, pelos “Lusíadas”, de Camões (em que se destaca a narrativa de Vasco da Gama ao rei de Melindre), e, no Brasil, pelos conhecidos “Caramuru”, do mineiro, frei José de Santa Rita Durão, ainda no período Barroco, e “A confederação dos Tamoios”, do carioca Domingos José Gonçalves Dias, representante da Primeira Geração do Romantismo.

Auerbach (2015: 1-20), exemplifica de maneira não muito favorável tal estratégia narrativa na citada “Odisseia”, no tópico “Mimesis”, no episódio intitulado “A cicatriz de Ulisses”, e discorre longamente sobre os efeitos expressivos obtidos pelo poeta referido, além de compará-los, principalmente sob o ponto de vista da descrição verbal apresentada no poema, (cheia de detalhes, adjetivada, abundante) com o episódio “O sacrifício de Isaac”, texto bíblico atribuído pela tradição a Moisés. Compara, portanto, textos de tipos diversos: o primeiro, literário ficcional, estruturado como flashback, produzido para a fruição estética, com o segundo, não exatamente literário, porque a tradição judaico-cristã qualifica-o como “histórico” e simultaneamente “inspirado” sobrenaturalmente, estruturado em cronologia linear, produzido com finalidade moralizadora, isto é, para promover obediência irrestrita a Deus. O último episódio, bem ao gosto da dramaticidade barroca, recebeu de Caravaggio, fundador e expoente do Barroco nas artes visuais, duas versões em pintura, ambas acima citadas.

Outros são os elementos que aproximam Jarman de Caravaggio. A capacidade de inovar, sobretudo.

No primeiro pela iluminação contrastiva, com mais de um foco de luz iluminando a cena, pela escolha de tipos populares como modelos, pela infinidade de detalhes apresentados sem prejuízo da unidade do conjunto dos elementos da obra. Também pelo enquadramento próximo, muitas vezes na maneira que o cinema, séculos depois denominou “plano americano” (não falo dos retratos, em que ele é obvio, mas de “cenas”, como “A adivinha” – 99 x 131 cm, cerca de 1596-1597 - e os citados “Os batoteiros” e “A conversão de Madalena”. Além deles, a originalidade dos temas populares, em obras leigas.

Caravaggio, São Jerônimo escritor, 1606.

No segundo, também pela iluminação contrastiva, com também vários focos de luz nas cenas, e pela capacidade de compô-las sinteticamente. Quanto ao enquadramento, interpreta a proximidade do olhar caravaggiano com a escolha de realizar todas as cenas em estúdio, como cenas de interior, causando efeito análogo ao obtido pelo pintor. Interpreta-lhe também os matizes colorísticos, não apenas o contraste de valores tonais. O calor dos vermelhos, como os profundos, dos panejamentos suspensos como cenário que o pintor escolhera, como os intensos escarlates de “São Jerônimo escritor” (112 x 157 cm, cerca de 1606), já exposto no MASP, e os vermelhos-terra. Principalmente “Terra de Siena Queimada”, nome que os artistas deram ao pigmento de argila cozida, como aparece em cena em que Jerusaleme moi a terra no almofariz de mármore. Também os ocres, em roupas como as túnicas de Abraão e São Mateus, na segunda versão de “São Mateus e o Anjo” (295 x 195 cm, 1602); os alaranjados, em madeiras envernizadas de tonalidades claras, como nos instrumentos musicais presentes em várias obras do pintor e cenas do filme, e ainda marrons profundos e graves a contrastar com carnações pálidas, coradas ou queimadas de sol. Verdes esbatidos e azuis da Prússia , bem como os brancos acinzentados, matizados por uma destas duas cores, fazem contaponto numa escala de complementaridades divídicas e triádicas às cores quentes destacadas.

Assim, Jarman preenche a grande tela cinematográfica com as imagens “picturais” com o movimento real, desenvolvido no tempo e na ação factual das personagens vividas pelos atores que lhas dão corpo, matéria e expressão corporal, gestual, fisionômica, detalhadamente. Também de sons ambientais esdrúxulos, como a narrativa de uma partida de futebol e o som de grande aglomeração humana, em cena na taverna, e de outros coerentes com as cenas, como sinos, vozes, além de músicas, barrocas ou não, e o indefectível apito de Jerusaleme.

Muitas outras relações entre o filme e as obras pictóricas ainda poderiam ser detalhadas aqui, mas, para finalizar, quero concentrar-me no aspecto da hipótese de o filme constituir uma tradução intersemiótica do conjunto das mais conhecidas produções plásticas caravaggianas. Justifico tal idéia pelo fato de o cineasta tê-las escolhido conforme se relacionam com situações narrativas ficcionais alicerçadas em situações biográficas da vida do pintor e não aleatoriamente. Todas enquadram-se perfeitamente na estrutura narrativa, criando um todo coerente de forma, ritmo e verossimilhança inequívoca.

Assim, posso qualificar o filme de Jarman como um texto semiótico produzido a partir de uma lei geradora análoga a (o conjunto) da(s) lei(s) geradora(s) da obra de Caravaggio, com as quais estabelece relações isomórficas, isto é, de “mesma forma”, em sentido lato, pelo modo de organização estrutural, o qual estabelece com as mesmas relações bastante abrangentes e compreensivas. Não é descabido afirmar, e o faço aqui, que constitui uma “tradução intersemiótica” complexa das obras também complexas do pintor italiano.

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Escolho o adjetivo ‘caravaggiano’ para significar “próprio de Caravaggio” e não ‘caravaggesco’, que significa “à moda de Caravaggio”, frequentemente empregado, de maneira errônea, no primeiro sentido.

Expressão preconceituosa, talvez, mas de uso comum entre seus biógrafos mais conhecidos.

Elemento útil para a análise comparada com a narrativa cinematográfica, à qual será procedida adiante.

Não do ponto de vista meramente biológico, mas estrutural da forma.

Termo estrito da teoria literária, significando “resumo do relato” e não no significado corrente de estória fantasiosa moralizante.

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