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O filme Blow-up de Antonioni faz 50 anos

  • João Eduardo Hidalgo FAAC/UNESP
  • 3 de jun. de 2017
  • 4 min de leitura

O fator técnico fundamental a ser considerado dentro do ato fotográfico (e cinematográfico) é a supra realidade que um processo fotográfico pressupõe. A câmera, que tem uma manipulação humana, capta quimicamente ou em pixels uma realidade muito mais complexa do que o olho e a mente humana podem perceber a princípio. Ela apresenta traços de um real muitas vezes não percebido de imediato pelo espectador. Esta é a razão dela ser sempre um registro do real e uma porta para a ficção.

O grande escritor argentino Julio Cortázar (1914-1984) escreveu um conto em 1958 ‘Las babas del diablo’, onde parte da ação de um fotógrafo ao registrar um instantâneo em um ilha no rio Sena, no centro de Paris, e acompanha todo o processo de compreensão e análise de tudo o que foi capturado nela. No conto o fotógrafo presencia uma cena em que uma mulher mais velha joga as suas teias de sedução, daí o nome do conto, sobre um jovem rapaz num jogo de permitir/proibir suaves beijos e inocentes carícias, que levarão a um jogo de amantes. Esclarecendo, Babas del diablo é o nome que recebem na Argentina as teias que as aranhas prendem na vegetação para capturar vítimas.

No filme a partir da análise e de ampliações da fotografia feita, o personagem-narrador acaba por perceber uma situação dramática, que a principio não havia entendido e como a sua presença e ação (de tirar a fotografia) interferiu nela.

Usando este conto como base o cineasta italiano Michelangelo Antonioni (1912-2007) realizou em 1966 o filme Blow-up, mostrando um fotógrafo londrino, que por puro tédio dentro de sua agitada vida, vai dar um passeio em um parque da periferia de Londres e começa a tirar fotografias aleatoriamente. Um casal se abraça no parque, de repente a mulher (Vanessa Redgrave) corre atrás do fotógrafo e exige o filme, dando início ao conflito central da obra.

O título do filme é um termo técnico que se refere a ‘ampliação’, que interessa pelo significado que carrega. O procedimento nos lança no terreno da construção de significados, se alguém recorta um detalhe da realidade e dá destaque a ele, a relação parte/todo está rompida. Novos significados e interpretações são acrescentados. No conto de Cortázar o escritor faz um jogo com as possibilidades de se contar uma história, em primeira pessoa do singular, terceira, primeira do plural e Antonioni leva este jogo para o filme. Quando vemos Thomas (David Hemmings) fotografando a famosa modelo alemã Veruschka, ela fazendo o papel de si mesma (atentar para o detalhe), visualizamos uma cena orgiástica e também criativa, pois vemos a partir da lente do diretor, um fotógrafo vendo a modelo pela lente de sua câmera. O recurso não é gratuito, ele fala da própria essência da trama do filme e do conto em que está baseado.

No início do filme Thomas aparece no meio de vagabundos saindo de um centro de acolhimento de pobres em Londres, para fotografar este grupo ele se disfarça como um deles. Na primeira cena do filme vemos um grupo de mímicos passeando pelo centro de Londres, provocando as pessoas e pedindo contribuição para seu espetáculo. Na última sequência eles voltam e instalam-se numa quadra de tênis, no parque onde Thomas fotografou o casal, e começam a jogar organicamente sem raquete e sem bola. Um dos mímicos/jogadores, num golpe, atira a bola para fora da quadra, todos se voltam para Thomas e ele entra no jogo e corre para buscar a inexistente bola e a atira para os jogadores. Neste momento Antonioni faz um primeiro plano do ator, que devolve a bola e não vemos mais os mímicos, mas ouvimos os barulhos e vemos que a principio Thomas entra na brincadeira, mas depois baixando os olhos volta para o seu conflito e abandona o parque na cena final do filme. No conto de Cortázar não temos um desfecho convencional, o garoto que fugiu das teias da mulher madura pode voltar para a praça no outro dia e ser enredado por ela novamente; no filme de Antonioni o final é aberto; quem foi morto, por quem, onde está o corpo e a mulher vai procurar o fotógrafo novamente? Nada disto interessa, a ficção criada por eles já se basta em si.

Esta obra prima do cinema contém o jogo primordial que constitui o próprio cinema. A narrativa tem como tema central uma obra de ficção, vinda da literatura e como ela usa um dispositivo técnico e seus procedimentos para criar uma realidade (documental) que é mais real que a própria existência física, pois é expandida, ampliada. E aqui se revela o eixo central da classificação dos gêneros cinematográficos a intenção criativa de seu autor, pois toda obra cinematográfica tem um índice de irrealidade na sua constituição. Quem decide se a obra se desenvolverá como documentário ou ficção é o autor, independentemente do assunto abordado ou do letreiro inicial que diga ‘baseado em uma história real’. Cinqüenta anos atrás Antonioni soube como ninguém utilizar este jogo fundamental do cinema e criar uma obra de referência para a história da sétima arte.

João Eduardo Hidalgo é doutor em Comunicação pela Universidade de São Paulo e pela Universidad Complutense de Madrid. Professor da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da Unesp de Bauru


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