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O filho de Saul em Auschwitz


Confira a crítica do professor doutor em cinema João Eduardo Hidalgo sobre o filme que levou o Oscar de melhor filme estrangeiro.


 

O filme húngaro Saul fia (O filho de Saul, 2015) foi eleito o melhor filme estrangeiro pela Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood neste domingo, ele era de longe o melhor dos cinco indicados.


Theeb (O lobo do deserto), da Jordânia, parece uma propaganda de viagem do Discovery, só tem uma coisa boa, o ator mirim protagonista Jacir Eid Al-Hwietat, os outros atores são primários e a história que não define os conflitos, não leva a lugar nenhum.


Mustang (As cinco graças) é um filme fraco, mal dirigido, que não enfrenta os preconceitos que mostra. Para fugir de complicações maiores o roteiro foge da estrutura familiar clássica, os pais morreram e as cinco protagonistas são criadas por uma avó fraca e por um tio que é a personificação do machismo.


Na resolução dos conflitos que afligem as jovens somos apresentados ao destino delas, que representa a condição da mulher na Turquia contemporânea, segundo a diretora elas tem três saídas: casar-se com quem mandarem, suicidar-se ou fugir.


El abrazo da serpiente (O abraço da serpente) tem tudo o que Hollywood gosta Rain Forest, nativos falando em língua exótica e paisagem deslumbrante; apesar da boa história perde-se no final e termina de maneira amadora, em nome de ser uma obra aberta, ficamos sem saber o destino de todos os personagens. Krigen é o de sempre, heróis metendo-se em uma guerra que não é deles e sofrendo muito, já tivemos o bastante disto.


Saul fia foi escrito e dirigido pelo jovem diretor húngaro Laszlo Neves com inspiração e com maestria. A imagem é retangular, proporção 1.33, formato do cinema clássico que perdurou de 1895 até meados dos anos 1950, quando a imagem entrou na era do cinemascope e saltou para 2.55, praticamente dobrando de tamanho. As imagens são coloridas, mas tem saturação baixa e em alguns momentos chegam perto do preto e branco.


Lembremos que a cor chegou aos filmes fotográficos comerciais em 1935 e nos anos 1940 elas ainda estavam se desenvolvendo. A ação do filme localiza-se no final de 1944, natural que a imagem seja levemente retangular e com uma cor esmaecida, perfeitamente ligada a época que representa.


A história de Saul, o talentoso ator Geza Rohring, acontece no pior dos 20.000 lugares de tortura e extermínio criados pela SS nazista, Auschwitz. O campo foi criado por ordem direta do chefe da SS, o limitado e virulento ex-criador de galinhas Heinrich Himmler, em abril de 1940 e foi liberado pelos aliados em 27 de janeiro de 1945.


Somos informados no início do filme que estamos em outubro de 1944, três meses antes do final do campo, um olhar mais atento nota um problema óbvio na caracterização dos atores, muito peso e muito cabelo, este foi o pior período de Auschwitz, faltavam suprimentos inclusive para os oficiais nazistas que administravam o lugar, a Alemanha já estava de joelhos.


Os prisioneiros deste período eram conhecidos como ‘muçulmanos’ pela aparência esquálida e por já estarem num torpor que os fazia murmurar frases sem sentido e quase inaudíveis.

Saul faz parte do Sonderkommando, um grupo de judeus escolhidos para conduzirem outros judeus para as câmaras de gás e para as valas de execução, em contrapartida tem acesso ao barracão onde são guardados os pertences dos executados, chamado de Kanada, onde podiam ser encontrados ouro, jóias, diamantes, moeda de vários países e comida.


Na cena inicial vemos um grupo de pessoas andando na floresta com imagem desfocada, que só recupera o balanço quando o rosto de Saul aproxima-se da câmera e por ai fica em longos planos. É a chamada câmera subjetiva que mostra o ponto de vista de Saul, ou na maioria dos planos conta a história dele da maneira mais próxima possível.


Esta câmera nos transforma em prisioneiros do campo, somos sugados para dentro do filme até seu desfecho. Vemos todas as feridas que Saul tem no rosto, no couro cabeludo, sua cor doentia de quem se alimenta mal, não dorme e que principalmente, está com a alma dilacerada. Nesta Auschwitz Saul tem, historicamente, a companhia de dois dos mais contundentes companheiros possíveis, Anne Frank (1929-1945) e Primo Levi (1919-1987).


Anne Frank foi enviada com a família diretamente da Holanda para Auschwitz, o número de Holandeses exterminados no campo foi de 60 mil, Primo Levi foi escolhido pela mão do destino dentro meros 650 judeus italianos enviados para lá. Anne Frank foi mandada junto com a irmã, no final de outubro de 1944, para Bergen-Belsen, onde ambas morreram de tifo em março seguinte (vale a pena conhecer a meticulosa biografia escrita por Melissa Müller, Anne Frank - The biography).


Primo Levi foi libertado, voltou para Turim, foi uma voz importante na divulgação das atrocidades nazistas, mas nunca se recuperou, suicidando-se em 1987. Anne Frank é autora de um diário que até hoje é campeão de vendas e de sensibilização, Primo Levi escreveu entre outros livro É isto um homem, que dispensa comentários já pelo título. Segundo o amigo e também escritor Elie Wiesel ‘Primo Levi morreu em Auschwitz, quarenta anos depois de libertado’.


Da estimativa de mortos em Auschwitz, que gira em torno de um milhão, 460 mil, ou seja, metade eram húngaros, como o personagem Saul. Quando o diretor agradece o apoio da Hungria na realização do filme entendemos que ele é um tributo para quase meio milhão de almas, que nunca voltaram para casa; e o monumento cinematográfico que ele criou é uma obra merecida para a memória de uma nação aviltada.


Enfatizo, a principal qualidade do filme é o uso de um procedimento técnico, um close quase permanente e planos longos que aprisionam o espectador dentro da rotina desumana de Saul. Não temos escolha, temos que passar por toda a brutalidade a que ele está a mercê, que vai de encaminhar velhos, crianças e doentes para a morte sem esboçar pena, e esperar pelo fim dos mesmos dentro das câmaras de gás enquanto as vitimas emitem sons de congelar o coração dos mais duros.


Num destes duros dias Saul vê um garoto que sobrevive a câmara de gás, mas que é sufocado pelo comandante que não suporta ver uma exceção dentro máquina nazista de extermínio. Sem nenhuma razão racional a estraçalhada alma de Saul escolhe o menino como filho e passa o dia todo procurando por um rabino para realizar o enterro, que é proibido pelo código do campo, os corpos devem ser incinerados e as cinzas jogadas no rio.


Os amigos não entendem a obstinação de Saul, sabem que ele não tem filho, alguns reagem com raiva e outros com compaixão. Saul consegue um suposto rabino, mas uma parte do sonderkommando planejou uma fuga e não há tempo para enterros, Saul foge carregando o corpo do menino nas costas, ao aproximar-se do rio são descobertos e mesmo sob fogo ele não solta o corpo, quase se afoga e é salvo por um companheiro, enquanto o suposto filho flutua rio abaixo.


Dentro da floresta o grupo encontra uma cabana e refugia-se, na porta aparece um menino, parecido com o filho de Saul, que está molhado e o encara fixamente, neste momento percebemos que a alma de Saul encontrou a redenção, agora a câmera aproxima-se do rosto do menino que foge ao perceber a chegada de soldados e nós o acompanhamos até que ele desapareça dentro da floresta, enquanto ouvimos sons de tiros e imaginamos o destino dos fugitivos, mas nós também estamos redimidos, Saul morreu com a alma e a esperança renovadas.


Em 2015 a humanidade celebrou 70 anos do final de uma guerra que mudou o seu destino, em janeiro Auschwitz recebeu a visita de mais de 300 sobreviventes e as imagens foram divulgadas no mundo todo. Neste contexto O filho de Saul foi criado e vale lembrar que o representante da Alemanha, para concorrer ao Oscar de Filme Estrangeiro Im Labyrinth des Schweigens (Laberinto de mentiras), trata dos primeiros processos alemães contra oficiais nazistas que atuaram em Auschwitz, e fala do despistamento/ocultação com o qual o ‘inocente’ povo alemão tratou o tema depois do final do conflito.


Em tempo, o filme Labirinto de mentiras é escrito e dirigido por um italiano, Giulio Ricciarelli, a Alemanha ainda tem muitos fantasmas para enfrentar, mas a Hungria pode respirar aliviada, Saul e seu filho estão salvos e por uma ação de seu próprio povo.


Publicado link: http://www.estadao.com.br/noticias/geral,os-destaques-do-estadao-noite-desta-segunda-feira--29,10000018891


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