Revolvendo o passado
- Marirosaria Fabris FFLCH/ECA/USP
- 18 de fev. de 2016
- 5 min de leitura
Uma volta ao passado obscuro da ditadura através de fotografias e histórias contadas por quem viveu o pesadelo da tortura.
A promulgação da Lei de Acesso à Informação, obrigou órgãos públicos a colocarem dados sobre suas atividades à disposição dos interessados, desde 16 de maio de 2012. Com a abertura dos arquivos públicos foi possível ter acesso a milhares de documentos e a um vasto material iconográfico.
O material encontrado em arquivos da ditadura deu origem a Retratos de identificação (2014), documentário de Anita Leandro (confira trailer abaixo), mas, apesar do que as imagens poderiam revelar, não motivou fotógrafos a retrabalhá-lo, a exemplo do que aconteceu em outros países, principalmente do Cone Sul, como no caso de Cristian Kirby em 119, em que os rostos de pessoas desaparecidas durante a ditadura chilena integram as intervenções concebidas a partir de suas fotos.
Realizada no Memorial da Resistência de São Paulo (2014-2015), a exposição relembrou o caso da Operação Colombo, articulada entre o governo local e a Operação Condor. Cada retrato – impresso, mediante emulsão fotossensível, sobre folhas do mapa de Santiago e do índice de suas ruas – é acompanhado de uma etiqueta com nome completo, data de nascimento e de sequestro, ocupação, dados familiares, militância e local da detenção. Uma forma de reafirmar a presença desses seres na História do país, por meio das marcas de seu pertencimento a uma malha urbana e social.
Santiago foi ainda a protagonista da série de fotomontagens La persistencia de la memoria (2014), em que Andrés Cruzat interveio sobre fotos tiradas durante o golpe militar, para oferecer um inquietante contraste entre a aparente “normalidade” do presente e o clima ameaçador do passado.

Dois trabalhos que se posicionam contra a negação da memória que paira sobre o Chile. Antes deles, na Argentina Marcelo Brodsky, Lucila Quieto e Gustavo Germano, parentes de desaparecidos, assim como Paula Luttringer e Helen Zout, vítimas da repressão, tiveram como propósito resgatar uma época graças a imagens fotográficas.
Em Buena memoria (1996), partindo do retrato de sua classe em 1967 no Colégio Nacional de Buenos Aires, Brodsky, desejoso de conhecer o paradeiro de seus colegas, tirou uma foto de quem havia respondido a seu convite, completando-a com informações sobre a vida atual de cada sobrevivente.
Os companheiros mortos ou desaparecidos não foram esquecidos: além de evidenciá-los com círculos no retrato coletivo ampliado, o artista os evocou em fotos que os flagravam em situações cotidianas, buscando preencher a lacuna deixada por esses seres aniquilados. A exposição foi apresentada no Memorial da Resistência de São Paulo em 2010-2011.
Quieto, para preencher o vazio deixado pela não presença do pai em sua existência e conseguir a foto que faltava ao álbum de família – a dela com Carlos Alberto –, deu vida a Arqueología de la ausencia, procurando construir a memória afetiva do que não foi vivido no plano concreto.
Primeiramente, ela projetou numa parede imagens do pai convertidas em slides para poder intervir fisicamente na projeção e bater um retrato dos dois juntos. Em seguida, a artista estendeu a experiência, convidando filhos de outros desaparecidos a participarem do projeto, desenvolvido entre 1999 e 2011.
Em El lamento de los muros (2000-2006), Luttringer retornou aos lugares onde ela e outras mulheres foram encarceradas, violentadas e torturadas, para fotografar, em preto e branco, detalhes desses interiores, em planos fechados que impedem a visualização do lugar, como havia acontecido com elas, por estarem encapuzadas. Já em Cosas desenterradas (desde 2012), seu olhar se detém sobre objetos encontrados em escavações num dos antigos centros clandestinos de detenção.
Em Ausencias (2001-2006), de Germano, as poses de uma série de fotos familiares tiradas nos anos de ditadura argentina são emuladas pelos membros sobreviventes de cada família, sendo deixado vazio o espaço antes ocupado pelos integrantes desaparecidos.
Em alguns casos, só existe o espaço vazio e não apenas quando se trata de fotos individuais. Entre 2012 e 2013, o fotógrafo repetiu a experiência com fotos de vítimas da ditadura civil-militar no Brasil na exposição Ausências Brasil: fotografias de Gustavo Germano, apresentada no Arquivo Público do Estado de São Paulo.
Zout, na série Huellas de desapariciones durante la última dictadura militar argentina 1976-1983 (2002), dedicou-se a recolher depoimentos e a registrar sobreviventes da repressão, o desenho de uma sessão de torturas e o interior de um avião utilizado nos chamados voos da morte, em imagens sempre a meio caminho entre o real e o ficcional pela manipulacão dos recursos fotográficos.
Outro artista que se debruçou sobre esse período foi João Pina, fotógrafo português radicado em Buenos Aires, com o projeto Sombra do Condor, integrado pelo livro Condor (2014) e pela exposição Operação Condor (2014), apresentada no Paço das Artes.
Na série “Salas de tortura”, ele não clicou pessoas, mas os locais do suplício, registrados frequentemente com uma luz dramática ou apenas por um detalhe, num gesto análogo ao de Luttringer, evidenciando as ausências causadas pelo desaparecimento, como Germano.

Foto de João Pina
Enterrar um membro da família representa o encerramento de um ciclo: é um ato simbólico muito significativo na esfera pessoal. De certa forma, foi esse também o objetivo de uma vídeo-instalação que integrou a exposição Resistir é preciso..., apresentada pelo CCBB, em 2013-2014, na qual os nomes de pessoas mortas pela ditadura iam se acumulando, feito ossos, numa espécie de vala comum, provocando, porém, um efeito contrário ao pretendido pelas autoridades com esse tipo de sepultamento: o de devolver a memória dos que se queriam destinados ao esquecimento.
Outra obra realizada com o mesmo intuito foi Penetrável Genet/Experiência Araçá, um labirinto em mármore branco sobre o qual eram projetadas imagens e cores, criado pelo artista Celso Sim e pela arquiteta Anna Ferrari, em homenagem aos restos mortais de 1.046 vítimas do regime militar, que descansam no Ossário Geral do cemitério do Araçá.
Seu título é uma referência aos penetráveis, instalações labirínticas de Hélio Oiticica realizadas na segunda metade dos anos 1960, e a Jean Genet, o qual, no texto A estranha palavra... (1967), incitava a fazer dos cemitérios espaços teatrais, onde a cerimônia fúnebre se transformaria numa representação dramática. A instalação artística, inaugurada em 3 de novembro de 2013, foi quase destruída na madrugada do dia em que deveria ter sido aberta à visitação por pessoas interessadas em não exumar o cadáver da ditadura.
Não foi diferente a intenção do performer Alexandre D’Angeli em 436, no qual propôs ao público a confecção de máscaras de papel que permitiam criar a volumetria de um rosto. Em cada máscara era colada uma etiqueta com o nome de uma das 436 vítimas oficiais da repressão – azul para os desaparecidos; vermelha para os mortos –, uma vez que o artista queria resgatá-las da desmemória imposta por pactos de silêncio ainda imperantes no país.
Apesar da aposição das etiquetas com os nomes das vítimas, a performance – realizada numa das quatro celas do conjunto prisional preservadas pelo Memorial da Resistência de São Paulo (que ocupa uma parte do antigo DEOPS) não consegue fazer emergir suas individualidades. Isso acontece em geral nas obras atuais sobre a ditadura no Brasil, nas quais se lida antes com listas de nomes, quando seria necessário devolver um rosto e uma história a cada um dos citados.
Emulando os anúncios sobre procurados pelas forças de repressão, o Comitê Brasileiro pela Anistia e o Grupo Tortura Nunca Mais, a partir do fim dos anos 1970, passaram a publicar cartazes com fotos de militantes mortos e desaparecidos.
Essa, sem dúvida, é uma forma de revolver um passado que alguns gostariam de apagar, mas, ao olharmos para esses rostos, o que sabemos deles? Nada ou quase nada. Por isso a urgência de repensar e representar artisticamente – como foi feito pelos fotógrafos estrangeiros – o que aconteceu com os desaparecidos no Brasil.
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